A violência é a revolta por uma insatisfação social, pois a desigualdade social é, sobretudo, uma forma de violência. Violência seria a luta desesperada para corrigir o que o indivíduo julga serem injustiças sociais. Ora, a violência associada à adolescência tem sido debatida às largas nos últimos anos. Contudo, boa parte dessas discussões não se preocupa com os fatores causais, mas antes se debruça sobre os efeitos da violência numa vã tentativa de explicar o fenômeno a partir de sua redução a fatos sem a preocupação de analisá-los de modo isento.

Compreender o fenômeno da violência num contexto prisional, cujos atores são adolescentes, é uma tarefa que exige um olhar voltado para as causas imediatas e mediatas, mais do que para seus efeitos, pois “mudanças tão profundas estão em jogo que é legítimo acentuar as inflexões e as rupturas da violência, mais do que as continuidades” (WIEVIORKA apud WAISELFISZ, 2002, p. 17).

Em se tratando de violência no mundo juvenil, os sistemas de relações sociais têm sido pouco explorados ou mesmo ignorados. O estudo da violência entre adolescentes reclusos requer análise de seu sistema de relações sociais. Cada experiência vivida pelo adolescente infrator e, neste caso, privado de sua liberdade, é de fundamental importância para a compreensão da dinâmica da violência num ambiente prisional, cujos atores eram, antes da reclusão, de uma peça montada em um cenário de transgressão social. Ora, “a violência contemporânea pode ser analisada como um vasto conjunto de experiências que, cada uma à sua maneira, traduzem o risco de implosão pós-moderna, e mesmo seu esboço”. (WIEVIORKA, 1997, p. 29).

 

A amostra

As informações contidas neste trabalho foram obtidas mediante pesquisa qualitativa, utilizando-se de entrevista semi-estruturada, com o contingente do Centro de Atendimento Juvenil Especializado, o CAJE, instituição governamental em Brasília, responsável por aplicar as medidas sócio-educativas, em regime de reclusão, aos adolescentes infratores.

Foram entrevistados, ao todo, 60 adolescentes, todos em internação estrita.[2] Esse número equivale a 24% do contingente de internos cumprindo sentença judicial na época em que a pesquisa foi realizada. Dos 60 internos entrevistados seis eram do sexo feminino e cinqüenta e quatro do sexo masculino. A diferença numérica quanto ao gênero se dá em razão de serem em menor quantidade os adolescentes do sexo feminino em reclusão. Na verdade, as seis entrevistadas, à época, eram as únicas adolescentes internadas em regime de reclusão estrita. As demais estavam sob regime provisório.

Por questões legais os entrevistados estão identificados por pseudônimos. Todas as informações contidas nesse trabalho foram checadas no decorrer da fala do entrevistado, por meio de reformulação de perguntas anteriormente feitas para verificar contradições, comparação de dados colhidos em outras entrevistas com outros adolescentes, depoimentos de funcionários da instituição de reclusão, ex-funcionários e assistentes sociais, além de documentação da própria instituição e de outros órgãos governamentais como, por exemplo, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal ou o Departamento da Criança e do Adolescente, do Ministério da Justiça.

 

Sociedade vingativa

A sociedade civil não trata do problema da delinquência, antes a contém, só que, se possível, com a expectativa de situa-la fora de seus arraiais. Tratar da delinquência seria criar mecanismos de recuperação do infrator para que este pudesse ser reabilitado e devolvido ao meio social para, então, agir, comportar-se de modo produtivo e socialmente útil. A ressocialização proposta pelo Estado está longe de ser concretizada efetivamente nos meios prisionais. Sendo o CAJE um meio prisional, apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não permitir o enclausuramento de infratores menores em prisões, daí o nome de “Centro de Atendimento Juvenil Especializado” (CAJE), verifica-se a existência concreta de toda uma ambientação carcerária punitiva, em contraste com ações reeducativa, na vida dos menores infratores ali depositados. Na verdade, CAJE é o nome que o Estado atribui à “prisão” de adolescentes. Muda-se o nome, para adequá-lo ao estatuto, porém mantém-se a dor do aprisionamento. O Estado e a Sociedade não se importam com o menor infrator; se se importassem envidariam efetivos esforços político-educativos para mudar o quadro de violência social no país.

Ao invés de investir em uma reestruturação do sistema de internação de adolescentes infratores o Estado aprisiona-os, tira-lhes o sentido de tempo, anula o direito de ir e vir, pune impiedosamente sem lhes dar condições de ressocialização. Assim, o espaço de internação de adolescentes infratores deixa de ser local para educação e se transforma em campo de punição: reflexo de uma sociedade ressentida e vingativa. Ora, a violência é latente dentro das instituições criadas e mantidas pelo Estado para “reeducar” e “ressocializar” o adolescente infrator.

A violência delinqüente e juvenil sempre existiu em qualquer sociedade. Porém, não tão intensa quanto nos atuais tempos em que se propalam abertura política e democracia pretensamente matura. Em solo brasileiro nunca se verificaram índices de criminalidade juvenil tão altos. “O retorno à democracia efetuou-se pari passu com uma intensificação sem precedentes da criminalidade. O número de delitos já havia aumentado nos anos 70. Mas foi nos anos 80, no exato momento em que a abertura política se iniciava, que o crescimento das taxas de homicídio se acelerou, atingindo patamares até então desconhecidos e combinando-se a outras formas de violência múltiplas e fragmentárias” (PERALVA, 2000, p. 73).

Assim, não somente as penitenciárias ficaram com suas capacidades de atendimento esgotadas, mas também as instituições para reclusão de adolescentes infratores. Essa superlotação, certamente, é intensificadora da violência. Desse modo, não é possível analisar a violência com base apenas no plano em que se manifesta, tomando-a como fenômeno único. As implicações que envolvem o fenômeno da violência entre adolescentes reclusos são plurais e sua própria pluralidade é a indicação da centralidade e abrangência do fato social investigado (MAFFESOLI, 1987). Entre as implicações ponderáveis que explicam o fenômeno da violência entre adolescentes há de se considerar a relação de carência de superego coletivo, expressa na relação do indivíduo com o Estado e a carência de superego paterno.

Uma sociedade vingativa não intenciona ressocializar menores infratores, apenas puní-los com o maior rigor possível; para tanto, o Estado se serve de seus carrascos. O Estado, em nome da ordem e da liberdade, mantém firme as algemas do castigo aos transgressores da sociedade. A Sociedade paga o Estado para punir os infratores e essa punição deve ser realizada intra-muros, longe dos olhares da população. A Sociedade não quer ver o castigo infringido aos adolescentes infratores, mas o aprova, desde que executado longe de sua visão. O provérbio popular reflete a alma brasileira, muitas vezes afetada pelo descaso com a dor alheia: “O que o olho não vê o coração não sente”. Desse modo, a Sociedade tapa seus olhos para as agressões punitivas realizadas no ambiente prisional e não se importa com o estado de dor imposta sobre a vida dos adolescentes infratores.

Num Estado Democrático há de se preservar os direitos à vida de todos quantos fazem parte da nação, mesmo daqueles que infringem suas leis sociais. Certamente, o sentimento de fúria toma conta da população, quando esta é colocada na posição de refém do banditismo que a permeia. Em tempos em que a criminalidade cresce avassaladoramente tende-se a deixar de lado o discurso dos “direitos humanos”, principalmente quando se trata de reconhecer os direitos humanos dos infratores, e também pensar nos “direitos humanos” da população como um todo. Entretanto, a questão central a ser discutida não se circunscreve apenas aos “direitos humanos”, mas ao direito à reeducação daqueles que perderam a capacidade de reconhecer no outro o direito à humanidade.

A inconsciência coletiva da vingança perpassa a todos que fazem parte da sociedade, inclusive os próprios adolescentes infratores que, quando perguntados sobre se é justo estarem naquele ambiente, responderam unanimemente, embora considerando muito pesada a pena imposta: “Eu errei, tenho que pagar”.[3]

É significativo o fato de que os adolescentes infratores, em conversas informais, mutuamente se ensinem a praticar novos crimes com técnicas cada vez mais apuradas. A Sociedade que esconde o rosto para os dramas do menor infrator não verá, mais tarde, o rosto do próprio infrator, mas o capuz que esconde o rosto anônimo de quem já não tem mais identidade social. O desdém da Sociedade para com o adolescente infrator gera a desidentificação do transgressor, conquanto menor o infrator não se preocupe com a revelação de sua identidade. Após a maioridade o infrator esconderá o seu perfil e não revelar-se-á, da mesma forma que a sociedade o abandonou e não se lhe revelou para ouvi-lo, durante seu crescimento até tornar-se um homem “civilmente capaz”.

Aqui dentro a gente só piora. Se eu tivesse um pouco do que falei agora há pouco, a gente podia sair melhor. Aqui dentro precisa de um acompanhamento melhor. Do jeito que tá, a gente só aprende a piorar. As conversas aqui é só de crime, do tipo: “Depois de maior, só com capuz”. O cara fica pior aqui dentro.[4]

A sociedade civil, conquanto esconda seu rosto para não sentir a culpa do castigo imposto ao adolescente infrator, tem sua parcela de responsabilidade na iniciação da criança e do adolescente no mundo do crime. A experiência criminal do adolescente é adquirida em meio à sociedade. Não se aprende a burlar as leis sociais nos antros marginais, mas sim no seio das famílias, nas festas sociais, nas escolas, nos bares, no futebol de fim de semana entre amigos e até mesmo nas igrejas. Assim, na adolescência é possível conhecer não somente o mundo criminal e dele fazer parte, mas também as formas legais para escapar das “garras da lei”. É, portanto, um conhecimento adquirido fora do ambiente prisional concentracionário.

[Quando cheguei aqui, no CAJE me] senti mal, né? Mas da primeira vez eu sabia que não ia ficar muito tempo, porque eu era primário. Na época eu tinha 15 anos. Eu já sabia disso lá fora, porque meus amigos me contavam. Eles eram descolados e me diziam que da primeira vez o juiz não prende a gente não.[5]

 

O Mercado da Violência Juvenil

Na ambientação da sociedade civil é que a proposta de crime é feita ao adolescente. A proposta para iniciação ao mundo do crime é multifacética e sedutora, e pode ocorrer em uma festa de aniversário, num churrasco de confraternização, no exercício das relações de “boa vizinhança”. A sedução configura-se no ambiente familiar, mediante propostas de resgate do marido e da obtenção de um prêmio financeiro, a fim de resolver problemas decorrentes do desemprego ou da sub-ocupação. A incompetência do Estado em não conseguir promover o crescimento econômico do país facilita ao submundo do crime o oferecimento de recompensa fácil para um “trabalho” de alto risco, mas aparentemente recompensador. “A violência vem preencher o vazio deixado por atores e relações sociais e políticas enfraquecidas” (WIEVIORKA, 1997, p. 25). Para o adolescente a falta de dinheiro faz a vida mais difícil. Sem qualificação o pai não consegue emprego e sem emprego não há recursos financeiros para viver dignamente em sociedade. O cenário é propício para o convite a que se integre no mundo do crime, através de mecanismos de cooptação afetivamente convincentes. Há de se considerar, ainda, que o convite sedutor para introdução do adolescente no mundo do crime, tenha sido feito numa festa: uma festa de aniversário, o que é significativo, pois “as festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e uma leitura soturna da vida. (…) Nelas, aquilo que passa despercebido, ou nem mesmo é visto como algo maravilhoso ou digno de reflexão, estudo ou desprezo no cotidiano, é ressaltado e realçado, alcançando plano distinto. Assim, é na festa que tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas” (DAMATTA, 1986, p. 81).

Meu pai tava desempregado, a vida tava difícil, aí me prometeram pagar R$ 30.000,00, se a gente resgatasse o Francisco da prisão. Era uma vizinha minha. Ela tinha quatro ou cinco filhos. Um dia fui lá porque era a festa de aniversário de um dos filhos. Depois teve um churrasco e eu fui de novo, e fui ficando amigo. Um dia ela e o cunhado, de Goiânia/GO, me propuseram de eu, com um outro, invadir a delegacia pra resgatar o marido dela. Eu pensei e depois aceitei.[6]

Em mais de uma vez a razão colocada pelo adolescente para o ingresso no mundo do crime estava intimamente relacionada com a pobreza, o desemprego e a falta de dinheiro para suprir as necessidades sociais básicas. Sem emprego e recursos a família encontra moradia nos redutos periféricos da região urbana. Ali se trava uma luta intensa entre viver honestamente e com fome, ou viver sem integridade, mas com recursos, ainda que mínimos, para a subsistência da família. É, sobretudo, no território da periferia que o antinatural se estereotipa, torna-se normal e passa a ser visto como um componente natural da sociedade, a ser aceito por todos quantos a integram.

As ciências sociais insistem em manter uma relação de determinação monocausal entre pobreza e criminalidade, expressa em uma geografia das mortes violentas, das intervenções policiais e da população das prisões. A associação entre crime e pobreza incontornável é uma fórmula reducionista que criminaliza a priori a miséria. “Noções como as de ‘revolta’, e mais recentemente a de ‘privação relativa’, reconstróem a relação entre crime e pobreza ali mesmo onde havia existido a vontade de negá-la” (PERALVA, 2000, p. 81).  Ora, a violência não é uma entidade com vida própria, que possa ser isolada de seus condicionamentos e analisada em laboratório, no microscópio (sob a lente) da moral. A percepção na agressão é diferente, entre o que não sofre e o que sofre suas conseqüências traumáticas. Aquele que considera a violência sem experimentar nenhuma situação de injustiça, antes é abrigado por  uma posição social confortável ou, pelo menos, suportável, tem outra visão e, conseqüentemente, outra representação da violência, em relação àquele que vive imerso em plena miséria desumanisante (BLAISE, 1966, p. 96).

O consumismo capitalista estimulado paradigmaticamente na sociedade ocidental impõe diferenças sociais e exalta os que desfilam vestidos com os símbolos visuais que ostentam poder social. Automóveis, imóveis, vestuário, e uma infinidade de outros símbolos, numa sociedade consumista, têm a tarefa de distinguir objetivamente quem pode exibir-se na sociedade com as griffes de poder dentre os excluídos e destituídos de instrumentos para se exibirem como portadores de poder social. O verbo “ter” torna-se sinônimo de “ser”, o que implica a negação ou exclusão dos desprovidos. Aos ocupantes dos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira, desqualificados para o mercado de trabalho, que cada vez exige maior aprendizagem e qualificação, e bombardeados pelo apelo consumista, resta-lhes conformar-se com a miséria de seu status quo, ou rebelar-se. E é através da rebelião e da transgressão das leis sociais que muitas crianças e adolescentes conquistam os símbolos de poder, dos quais antes de entrar no campo da infração estavam privados de usufruí-los. “A violência é (…) antes de tudo uma resistência da identidade ameaçada, ou a caminho da destruição” (WIEVIORKA, 1997, p. 34).

[As dificuldades de sobrevivência que eu encontrei fora do CAJE foi a] falta de dinheiro. Minha mãe ganhava salário e pouco, sustentava eu e mais três irmãos, além de pagar aluguel. Chegava todo fim de ano, Natal, e a gente não podia nem comprar uma roupa nova. O maior sofrimento. Foi aí que comecei a me envolver. O dinheiro que minha mãe tirava num mês eu tirava numa noite. Eu vendia droga. Vendia Merla. Eu comprava do patrão a lata por R$ 60,00 e vendia por R$ 130,00. [7]

Se eu pudesse] fazia o dinheiro desaparecer. Ninguém ia ter dinheiro; porque uns ganham duzentos, outros ganham milhões; não tem emprego… Aí a gente tem que roubar. [Se eu pudesse] eu tirava o dinheiro do mundo. [8]

Na sociedade consumista e anômica, cujas autoridades são crescentemente desvalorizadas pela sociedade, não é necessário ter moral, e sim apresentar a marca certa, a griffe adequada, que impõe respeito, dá visibilidade e traz a sensação de ser melhor que os outros, de ser mais poderoso, mesmo que para tanto seja necessário entrar no campo da criminalidade. “Eu queria dinheiro pra comprar roupas de marca. Agora… (pausa) Sem dinheiro… (pausa)… não tem emprego pra arrumar… (pausa) a gente se envolve com umas companhias… o que sobra é roubar”. [9] Ora, “enquanto as normas definem as formas de comportamento esperadas dos membros de uma sociedade, os valores justificam de forma mais elaborada e generalizada tanto os comportamentos apropriados, como as atividades e funções do sistema social” (MOREIRA, 2000, p. 17).

Objeto de luta material, objeto de luta simbólica, instaurador de lugares identitários, de status, ordenador do espaço vivido e relacional, o dinheiro e suas representações, muito além do poder imediato da compra e da posse concreta de objetos que propicia, nos conduz por caminhos de um imaginário constitutivo das relações e das práticas sociais em sua pesada materialidade. (GALANTE, 1998, p. 147).

A sociedade consumista provoca, em última análise, uma densa frustração do excluído para consigo mesmo e para com a sociedade, além da expectativa de poder mudar de vida, quando convidado pelos experientes infratores, para seguir um outro caminho, o caminho da oportunidade de ter dinheiro fácil para poder realizar seus desejos até mesmo pela via da ilegalidade, pois as vias estabelecidas pela legalidade social não lhe dão oportunidade, sequer, de sair do território do submundo e se estabelecer em outro espaço geográfico digno que propicie educar os filhos longe da influência marginal e infratora. Nesse campo territorial os “papeis sociais formam, juntamente com outros elementos, verdadeiros conjuntos que marcam e são marcados por seus domínios de origem” (DAMATTA, 1983, p. 75).

Eu já cresci com isso na cabeça. Já vi tanto crime… A gente se espelha em quem tá perto. A gente cresce com arma, droga, crime… Sua mãe não pode te dar dinheiro, o outro te oferece muito dinheiro pra roubar; aí você acaba fazendo o crime.[10]

A pior coisa lá fora é ter que desviar das drogas. É duro ter de se livrar das drogas. As drogas estão em todo lugar. A violência também. Onde eu moro a violência e a droga é muita. Você já cresce no meio da violência e da droga. Você acaba tendo que se curvar pra droga e pra violência, se não, morre. A maior dificuldade lá fora é ter de se livrar da droga. Onde você mora todo mundo vive da droga, cheira a droga, anda com a droga. A droga tá em todo lugar, em toda esquina. Aí, por mais que você não queira, vai ter que se curvar. Ou se entrega pra droga ou morre.[11]

Ora, a casa e a rua muitas vezes se misturam e se confundem, em especial nos lares destituídos de recursos mínimos para a manutenção da estrutura familiar. Em grande medida as casas localizadas na periferia urbana acabam sendo uma extensão da rua e vice-versa, de modo que a criança e o adolescente, nesse espaço, quando vão pra rua, na verdade continuam transitando em um espaço que vira extensão de sua própria casa, e quando, ao final do dia retornam para suas residências, não deixam de sair da rua.

Casa e rua enquanto categorias sociológicas implicam uma oposição e também gradações. (…) Assim, a própria rua pode ser vista e manipulada como se fosse um prolongamento ou parte da casa, ao passo que zonas de uma casa podem ser percebidas em certas situações como parte da rua. Um exemplo significativo do primeiro caso são as casas de Nápoles ou as favelas cariocas, onde é difícil demarcar com nitidez os limites das casas e das ruas. (…) De fato, o único modo de entender corretamente esse quadro dicotômico é procurar vê-lo tanto na sua lógica quanto nos seus movimentos e articulações, pois é na sua dialética – nas suas relações recíprocas – que poderemos escapar realmente do congelamento a que freqüentemente conduz a visão tipicamente formalista e taxonômica (DAMATTA, 1983, p.74).

A anomia e o senso de impunidade das autoridades civis e militares também levam o adolescente a ver o ato infracional com naturalidade. Na vida criminal, sob a ótica do adolescente não há infração, desde que realizada por quem é poderoso. No crime todo poder lhe é prometido, entre os quais inclusive o poder de subornar a polícia. Não é incomum encontrar-se no CAJE depoimentos como: “Tem muita polícia corrupta. Conheço muitos que deviam tá aqui atrás das grades com a gente. Conheço muito polícia que vende arma pra bandido”.[12] E ainda: “Antes de eu vir pra cá eu fornecia armas pra galera. Eu comprava da polícia mesmo. A polícia pega arma minha e vende pra outro fornecedor. Pega de outro e vende pra mim. Um 38[13] tá custando uns R$ 300,00 ,   R$ 380,00. Uma 9mm tá na faixa de R$ 550,00 R$ 600,00. É caro não é?[14]

A identidade criminal do adolescente infrator é construída também através do apoio objetivo velado que a sociedade dá à infração em troca dos recursos financeiros advindos da delinquência juvenil. Nesse caso, os hotéis urbanos têm uma participação efetiva no apoio à delinquência e criminalidade, quando, por exemplo, acolhe em seus recintos adolescentes prostituídas ou traficantes, sem questionar sua permanência no local. A rede hoteleira acolhe o adolescente e lhe dá guarida, acobertando-lhe os crimes. O adolescente evade-se de sua residência familiar, quando a tem, porque tem consciência de que a sociedade lhe fornece “segurança” sob a forma de valhacoutos quartos de hotéis em troca de vantagens pecuniárias espúrias. Essa relação promíscua entre os quartos de hotéis que a sociedade oferece ao adolescente infrator, em troca de vantagens ilegais e ilegítimas, sejam financeiras ou não, explica o fato de um adolescente de 15 anos de idade, aparentando ter no máximo 12 anos, desacompanhado dos pais conseguir se instalar num quarto de hotel, enquanto sua cama, em sua casa, amanhece vazia. “Eu já dormi muito fora de casa, por causa da droga. Eu é que quis sair de casa e fui dormir na rua. Dormi pouco na rua. Mas já dormi até em Hotel, com dinheiro roubado. Também dormia em casa de amigo. Eu saia muito de casa pra dormir fora”. [15]

 

Conclusão

A sociedade civil trata com preconceito o infrator, principalmente o adolescente infrator, pois espera-se deste uma conduta ingênua, inocente, afinal, acabou de sair da fase infantil. O adolescente infrator é duramente excluído e estigmatizado na sociedade. O preconceito excludente e estigmatizante faz dele um pária e o esvazia de qualquer esperança de mudança de vida. Uma vez criminoso o adolescente sempre se sentirá criminoso na sociedade aberta, pois o estigma infiltrar-se-á em sua alma e estampar-se-á em sua face. Somente entre outros criminosos o infrator se sente em casa. Ali ele não é excluído, nem estigmatizado. No mundo do crime o infrator é respeitado pelos seus iguais.

Diante dessa conjuntura social, pergunta-se: qual o futuro do adolescente infrator no Brasil? Ora, vencer o ethos criminal e possibilitar ao adolescente uma nova cosmovisão distinta de tudo quanto aprendera, mesmo dentro de uma instituição cuja proposta é sua ressocialização e reeducação, não é tarefa simples. Cabe à sociedade decidir se deseja manter o status quo ou se tem a intenção de mudá-lo. A opção pela mudança significa de fato iniciar um processo de desconstrução teórico-prático do adolescente infrator e quebrar as algemas que o imobilizam e o prendem ao passado.

 

Bibliografia

BLAISE, Michel, Violence libératrice et conscience chrétienne, Frères du Monde, Bordeaux, 1966, 7F Supplément au n.º 40-41.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

GALANTE, Luis Augusto Vicente. As falas do dinheiro: imagens e representações sociais. Dissertação apresentada ao Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, Brasília: UnB, 1998.

MAFFESOLI, Michel. Dinâmica da Violência. São Paulo: Vértice, 1987.

MOREIRA, Alice da Silva. Valores e dinheiros: um estudo transcultural das relações entre prioridades de valores e significado do dinheiro para indivíduos. Tese apresentada ao curso de doutorado do programa de pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília: UnB, 2000.

PERALVA, Angelina. Violência e Democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra Editora, 2000.

WAISELFISZ, Jacobo. Mapa da violência III: os jovens do Brasil: juventude, violência e cidadania. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Ministério da Justiça/SEDH, 2002.

WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tempo Social. São Paulo. v. 9, n. 01, p. 5-41, maio de 1997.

 

Notas

[1] Retirei a nota de rodapé de n.º 1, que tratava de minha qualificação acadêmica. Todos os entrevistados receberam nomes fictícios.

[2] Há duas classificações para adolescentes numa instituição de reclusão. internação estrita, que diz respeito àqueles que já estão cumprindo pena, e internação provisória, que diz respeito àqueles que estão internados aguardando sentença judicial. Em geral, os adolescentes sob internação provisória somam a metade daqueles que estão em regime de internação estrita.

[3] Vide demais relatos no corpo deste trabalho.

[4] Entrevista concedida Eduardo. Casado há quatro anos, tem um filho recém nascido e a esposa tem pouco mais de 20 anos. É o caçula de seis irmãos e mora na periferia de Brasília/DF. Quando se internou pela primeira vez o foi por assalto à mão armada. Na época em que concedera a entrevista estava cumprindo reclusão por tentativa de homicídio. Eduardo ficou com ciúmes de sua mulher e tentou matar aquele que ele julgava estar seduzindo sua companheira.

[5] Entrevista concedida por Jonas. Já esteve outras vezes no CAJE. Dessa vez sua internação se dá por ter cometido latrocínio, roubo seguido de morte. Jonas e seu companheiro de crime tentaram assaltar uma condução na periferia de Brasília/DF. O motorista reagiu, tentou segurar sua mão. O revolver estava engatilhado. Jonas não pensou duas vezes: “Foi só apertar o dedo”.

[6] Entrevista concedida por Renato. Tem pais vivos e divorciados. Quando foi entrevistado estava experimentando pela primeira vez a internado no CAJE. Foi capturado após tentar fazer um resgate de um preso, numa delegacia, numa cidade de Minas Gerais. Quando Renato invadiu a delegacia tinha 17 anos.

[7] Entrevista concedida por Amaro. O pai abandonou a família. “Eu acho que tenho pai, mas não sei; desde quando eu tinha três anos que ele me abandonou”. Tem 18 anos e antes de se internar no CAJE trabalhava como “ajudante de caminhão” Era “descarregador”. Atualmente cursa o Ensino Fundamental. Experimenta pela primeira vez a internação no CAJE, por homicídio e tentativa de homicídio.

[8] Entrevista concedida por André. Durante a entrevista André falava com a cabeça baixa e a voz embargada, quase ininteligível. Algumas vezes tive de perguntar por mais de uma vez o que é que ele estava dizendo. Possivelmente estava havendo um processo de regressão motora da fala, advinda da tensão angustiante e do silêncio a que era imposto continuamente para, literalmente, não abrir a boca. É a terceira vez que está no CAJE.

[9] Entrevista concedida por Eduardo. Vide descrição anterior.

[10] Entrevista concedida por Antônio. O pai abandonou a mãe quando o adolescente ainda era muito pequeno, o que o leva a não saber precisar a data da separação. Tem irmãs mais novas, todas filhas de outro pai. Atualmente sua mãe está grávida e mora com outro companheiro. Segundo o entrevistado sua mãe tem cerca de 35 anos de idade e mora na periferia de Brasília/DF. Antônio está internado no CAJE pela sétima vez.

[11] Entrevista concedida por Sandro. Tinha 5 anos de idade quando o pai abandonou a família. Aos 11 anos viu o pai morrer de cirrose, provocada pelo alcoolismo. Convive bem com a mãe e com o atual companheiro dela. Tem mais três irmãos. Nenhum deles esteve internado no CAJE. “Sou a ovelha negra da família”, disse o adolescente no início da entrevista. É casado e experimenta sua quarta internação no CAJE.

[12] Entrevista concedida por Eduardo. Vide descrição anterior.

[13] Revolver calibre 38.

[14] Entrevista concedida por Sandro. Vide descrição anterior.

[15] Entrevista concedida por Felipe. Cursa a segunda série primária, tem pais vivos, mas diz que o pai abandonou sua mãe quando ainda era muito criança, o que lhe dificulta precisar o ano em que o pai abandonou a família. A mãe, atualmente, tem outro companheiro e mora na periferia de Brasília/DF. É o mais velho dos irmãos, cinco ao todo. Os outros não têm passagem pelo CAJE. Apesar de ter apenas 15 anos atualmente está cumprindo sua nona internação.