O ex-presidiário sobrevive com o estigma que o corrói existencialmente. A – leia-se -, inclusão perversa é um abuso na sociedade. De acordo com René Girard, sem violência não existe a possibilidade de relação social, pois a violência é a própria essência das relações sociais e das leis que as regulam normativamente (GIRARD, 1998). Nas relações sociais não há lugar para o papel de vítima. A vítima e o agressor confundem-se e complementam-se. Desse modo, é imprescindível estar atento às sutis variações e troca de papéis dos atores envolvidos no cenário social, principalmente, em se tratando de compreender o comportamento da pessoa que experimentou a vida num presídio e, após o cumprimento da pena imposta pelo Estado, é liberado do universo prisional, mas não se livra de uma interação social estigmatizante.

Quando se trata de estudar o fenômeno do egresso de uma instituição presidiária é preciso estar atento ao fato de que a agressão física, experimentada pelo egresso, é uma manifestação latentemente espetacular da violência e com repercussões constantes em sua própria vida. A agressão mais abrangente, forte e densa é a psicológica, moral, ética e verbal, que se realiza no quotidiano, nas relações sociais de modo invisível e silenciosa, sempre sutil, na maior parte das vezes imperceptível. Desse modo, o ex-presidiário é violentado psicológica, moral, ética e verbalmente, o que reforça a auto-estigmatização. O ambiente prisional imprime em sua mente o estigma de ser a escória do mundo e que sua passagem pelo universo concentracionário foi uma forma de vingança da sociedade (GOFFMAN, 1988; GOFFMAN, 1968, p. 13-72).

A discriminação do ex-presidiário é, em grande medida, uma agressão velada, implícita, na qual, de modo geral, somente o agressor e a vítima têm consciência das brutalidades infligidas e da vitimização internalizada. “Mesmo oculta, não-verbal, abafada, a violência transpira através dos não-ditos, dos subtendidos, das reticências, e exatamente por isso é um vetor de angústia” (HIRIGOYEN, 2002, p. 112). O transgressor dificilmente se livrará do estigma da prisão. Portanto, estudar a existência pós-cárcere é penetrar num mundo complexo e dissimulado, inacessível mesmo ao pesquisador, incapaz de, dialeticamente, envolver-se e distanciar-se. Possivelmente ver-se-ão apenas as manifestações óbvias da reclusão.

A maior e mais significativa manifestação da agressão, após o tempo passado num presídio, encontra-se no âmbito psicológico. Nessa esfera as almas são estupradas, a psique é entortada e as feridas não se cicatrizam facilmente. Aliás, quase nunca se cicatrizam, pois a sociedade se encarregará de lembrar-lhe cotidianamente que nela (na sociedade) não há espaço para o egresso, a não ser na condição de ex-presidiário, o que significa ostentar os símbolos estigmatizantes e inconscientes da prisão. Para o ex-presidiário não resta outro modo de viver, senão carregando as marcas internas da prisão, que acabam por definindo seu modo de pensar e agir.

Ora, o sistema penitenciário brasileiro, de acordo com os dados mais recentes fornecidos pelo Ministério da Justiça (junho de 2008)[1], conta com um contingente de 130.745 presos em regime provisório e 164.594 presos em regime fechado, totalizando 295.339. Ao considerar ainda os que estão aprisionados nas Delegacias de Polícia esse número aumenta em 58.901 contabilizando no total 354.240 presos no território brasileiro. Há alguns anos Luiz Flávio B. D’Urso já lembrava a crueza do sistema: “[O] sistema (…) impõe as sevícias físicas e sexuais ao encarcerado, num contingente que hoje tem 30% de infectados com AIDS e 70% de portadores do bacilo da tuberculose. É desse meio que surge o egresso.” (D’Urso, 2001).

O estudo sociológico dos indivíduos egressos de uma penitenciária requer análise do papel que exercem no sistema de relações sociais. Os atores egressos do presídio eram, antes da reclusão, partes de uma peça montada em um cenário de transgressão social. Assim, há de se considerar as relações sociais do indivíduo que, após ter sido aprisionado, experimentou a intensificação de um processo anômico contínuo, em um contexto social marcado por toda sorte de adversidades.

O presente artigo aborda a auto-estigmatização dos ex-presidiários sob cinco aspectos, a partir de entrevistas realizadas com egressos em Brasília-DF. Primeiramente analisa-se a questão do desemprego, mais propriamente dito, as dificuldades de empregabilidade do ex-presidiário. O ex-presidiário não consegue espaço no mercado de trabalho globalizado e tecnologizado, pois desqualificou-se durante sua existência. Todos os entrevistados não tinham sequer concluído o ensino fundamental, quando foram apenados em reclusão. Ao cumprir a pena de reclusão alguns conseguem concluir o ensino médio, mediante programa de ensino ministrado dentro da prisão. Porém, o mercado de trabalho não absorve mais os que detêm apenas o diploma de conclusão do ensino médio. As formas de trabalho se tecnologizaram em velocidade cibernética, frustrando a expectativa do egresso de estabelecer-se como um trabalhador.

Em seguida, analisa-se o estigma do ex-presidiário, exponenciado pela falta de credibilidade, não apenas da sociedade, mas do próprio ex-presidiário, que também não confia mais em si. Não bastasse a completa falta de credibilidade da sociedade, em relação a tudo o que o ex-presidiário faz, há ainda a sensação de uma completa impotência deste, para se impor como útil e necessário à sociedade.

A pesquisa também considerou a miséria fora da prisão. Sem qualificação, o ex-presidiário enfrenta o problema de ter de sobreviver na miséria. Sem direito a trabalho, por causa de sua desqualificação e estigma resta-lhe viver como prisioneiro de sua própria condição social. A miséria a que é submetido o força a procurar no lixo uma forma de sobrevivência. Sua mulher e filhos aguardam que ele traga para casa algum tipo de subsistência que, ao ex-presidiário, só pode ser conseguida de forma criminosa ou sob a linha da miséria social.

A perda de identificação do grupo social com o indivíduo transgressor também foi observada na presente pesquisa. Em alguns casos, não apenas a vizinhança, mas também a família rompe com o egresso e não permite qualquer meio de aproximação. A família e a vizinhança excluem o transgressor e o expõe à um processo anômico.

Por fim, é considerada também a perda de cidadania. Sem qualificação e identificação com o meio social, o indivíduo transgressor perde também sua cidadania, conquanto, para ele, essa cidadania fosse meramente ornamental e inexistente. Ao sair da prisão a perda da cidadania ornamental é agravada pela falta de seus documentos pessoais.

 

O ex-presidiário e o desemprego

O preso que experimenta dez anos em intensa ociosidade estranha e sofre as conseqüências da ociosidade que lhe é imposta, após sair da prisão. O ócio, geralmente, existente na prisão não ameaça a sobrevivência do preso, pois tem a garantia do mínimo indispensável à vida, a saber, “casa”, comida, uniformes, água, luz elétrica, assistência médica. Quando preso, o entrevistado gastava seu tempo em atividades de ginástica ou artesanato, para que o tempo, em sua vida, pudesse ser digerido. “Ali dentro eu passava o dia malhando. Era pra passar o tempo. Também fazia artesanato pra passar o tempo. Era eu e mais um na Papuda”.[2]

O entrevistado hoje, após sair do presídio não pode, portanto, conformar-se com a ociosidade que lhe é imposta. Sua mulher trabalha numa feira de verduras, denominada “Sacolão”. Ele, por sua vez, fica em casa. Para combater a ociosidade, cuida de sua pequena casa e torna-se um empregado doméstico de si mesmo, sem remuneração.

O que eu estou achando mais difícil hoje é ficar parado. Por enquanto, eu fico em casa, enquanto não arrumo emprego. Fico cuidando da casa. Arrumo a casa, cozinho, faço tudo. Enquanto isso ela trabalha num “Sacolão” de verduras em Taguatinga. Ela faz tudo lá. É “serviços gerais”. Ela já trabalha lá há muitos anos.[3]

A economia globalizada[4] tornou o mercado mais qualificado e seletivo. A tecnologia domina a sociedade, as finanças e o comércio. Desse modo, resta pouco espaço para os que não se ajustaram aos tempos pós-modernos. O fenômeno do (des)emprego é global. Num Estado em que a Educação não é prioridade, resta ao povo sobreviver sob a linha da miséria social. Assim, boa parte das pessoas que formam a Nação, e não tiveram acesso à educação, não tem conseqüentemente qualquer chance de empregabilidade. Os ex-presidiários são um caso singular em um mercado de trabalho cada vez mais restrito, rígido e seletivo. Mesmo após sua pena ter sido cumprida e anelando qualificar-se para o mercado de trabalho, o ex-prisioneiro não consegue realizar seu intento. A baixa escolaridade é uma barreira quase instransponível cristalizada ao longo dos anos.

Só tenho o primário. Fui até à quarta série. Quero estudar, mas chego em casa às 19h40. Aí não dá pra ir pra escola. O sinal já bateu e eles não deixam a gente entrar na Escola. O dinheiro também não sobra pra pagar a escola. Então, no momento não tenho como estudar. Nesses 10 anos que se passaram eu sinto não ter conseguido estudar. Mas até os 40 anos eu quero conseguir o segundo grau. Qualquer coisa e me perguntam qual é o meu grau de instrução. Quando eu falo que tenho só o primário, as pessoas não podem me ajudar. Eu fico muito sentido. É a maior barreira que eu tenho. A falta de estudos. Hoje eu não tenho a taxa pra pagar o SESI. É uma taxa de R$ 80,00 do Supletivo. Quando a gente é solteiro o dinheiro sobra mais. Casado, o dinheiro fica bem contado.[5]

A economia globalizada, concomitantemente, desemprega e não emprega. A omissão do Estado provoca o surgimento de milhões de indigentes, sem nenhuma assistência. “A aceleração microeletrônica do processo de desmobilização de milhões de pessoas do âmbito do trabalho e a extraordinária expansão do tempo livre tornam-se um motivo de pesadelo sem fim, ao invés de representar possibilidades efetivas de libertação da ‘maldição’ bíblica do trabalho”. (CASTELO BRANCO, 1999, pg. 547). Segundo Cruz, pesquisador do Departamento de Tecnologia da Informação, da Universidade Católica de Brasília, atualmente, há em todo o mundo, 250 mil ofertas de emprego, geradas pela tecnologia da informação, porém, faltam os meios de preencher essas vagas, diante da total carência de qualificação do trabalhador.[6]

O neoliberalismo[7], com todas as suas implicações no mercado de trabalho tem estimulado, em última análise, a configuração de uma sociedade mais agressiva, brutal e perversamente espetacular. A virtualização do trabalho na globalização do mercado é um incentivo à emergência de indivíduos desocupados, desempregados e ressentidos. Da Matta, ao analisar o fenômeno da transgressão social brasileira, escreve que esta “não é um mecanismo social e uma expressão da sociedade, mas uma resposta a um sistema” (DA MATTA, 1983, pg. 18).

O ambiente de trabalho, quando associado ao declínio do “artesanato intelectual” em favor do assalariado, traz como conseqüências uma transformação da relação que o trabalhador tem com o produto de seu trabalho:

O desenvolvimento de amplas unidades coletivas de produção (não somente no âmbito do rádio, da televisão, do cinema, do jornalismo, mas também da pesquisa científica) e o declínio correlato do artesanato intelectual em favor do assalariado, envolve uma transformação da relação que o produtor mantém com o seu trabalho, das representações que possui acerca de sua posição e de sua função na estrutura social, bem como das ideologias estéticas e políticas que professa (BOURDIEU, 1987, pg. 153).

 Diante desse ponto-de-vista, pergunta-se: E o produtor sem produto? Isto é, o trabalhador sem trabalho, que não mais participa das “amplas unidades coletivas de produção”, simplesmente por não ter sido absorvido pelo mercado? Sem dúvida, também é submetido a transformações que mantêm, não através de trabalho, mas das representações que possui acerca de sua posição e de sua função na estrutura social. O ex-presidiário, potencialmente desempregado, desempenha um papel na singular sociedade. É mais um desconectado anômico na sociedade globalizada e, ao longo de sua jornada de desemprego, sofrerá um impacto em relação às ideologias estéticas e políticas que professa.

A imposição neoliberal de não participação nas unidades coletivas de produção configura o campo social a partir de uma mudança da visão que o trabalhador tem sobre o seu trabalho, suas ideologias estéticas e políticas. O desemprego – tendo como pano de fundo a tecnologia – em última análise, vulnerabiliza o sujeito a cometer ações transgressivas.

O que faz a situação de hoje diferente da dos tempos dos gregos é que já não há mais necessidades de escravos, nem mesmo de muitos trabalhadores. O avanço técnico permite que os ricos não necessitem dos pobres para o trabalho: as máquinas fazem o papel que antes era reservado aos escravos e depois aos pobres. Em vez de necessitar de trabalhadores, o sistema permite a sua exclusão. Os ‘bárbaros’ podem morrer fora – na África, na Ásia, na América Latina – ou como sem-teto nas ruas e bairros pobres das grandes cidades dos países ricos. (BUARQUE, 1994, pg. 21).

O entrevistado Fernando Oliveira preocupa-se com o seu futuro, pois não quer apenas um salário que lhe dê garantias de uma sobrevivência presente; quer ter a certeza de que no futuro também poderá contar com um salário estável.  O entrevistado deixa claro que deseja “garantia de trabalho” para ter “garantia no futuro”.

Não tenho emprego. Ninguém confia na gente. Aí, então, eu me viro como dá. Eu vendo mel em cápsulas. Mas eu preciso de um emprego fixo. Eu tô pensando no futuro. Como vai ser? Sem carteira assinada, sem aposentadoria. Vai ser muito difícil. Eu preciso de um emprego fixo. Não compensa viver de bolsa. O problema que eu tenho hoje é voltar pro mercado de trabalho. Até agora não tive opção. (…) Eu quero trabalhar com carteira assinada. Só que não tem trabalho desse tipo pra mim. Eu já fui muito discriminado. A gente é muito discriminado. Na UnB também discriminam a gente. Ali tem uma capa muito grande. Há muita falsidade. Porque a gente não tem estudo somos considerados inferiores (sic.). Ali eles tentam ajudar a gente com bolsa. Mas bolsa não me dá carteira assinada. O pouco que eu ganho da bolsa ainda desconta o ônibus; fica muito pouco. Quando eu recebia a bolsa da UnB eu fui até entrevistado pela Globo. Era um projeto de trabalho pra nós. Um projeto de colocar a gente de volta no mercado de trabalho. Mas não deu certo. Até hoje eles têm aquele projeto, mas é tudo muito cheio de falsidade. O que eu quero é garantia de trabalho. Eu não quero salário; quero segurança para o futuro. (…) O que eu quero é trabalhar com carteira assinada, pensando no meu futuro, e de minha família. Mas não tá fácil (sic.).[8]

A desqualificação profissional, somada às exigências da economia globalizada e de um mercado de trabalho tecnologizado, intensifica o hábito compulsivo ao retorno e às facilidades da vida criminal. Os parceiros do passado e do presente não se cansam de propor àquele que deseja mudar de comportamento, “novas” e melhores oportunidades de voltar à vida criminosa. Para tanto, o proponente busca desqualificar o grupo social que o sustenta atualmente, no caso – a igreja. Apesar das decepções do entrevistado com alguns membros da igreja, continua no propósito de segui-la.

Antes de eu assumir esse emprego em que estou agora, fiquei desempregado por cinco anos. Não é fácil. Até porque, há no meio da malandragem “acordos”. Se você não os cumprir, morre. Eles me perguntam: “O que a igreja está fazendo por você?” Eu digo que estou caminhando com a igreja e a igreja, caminhando comigo. Quase todos que estavam na Papuda comigo voltaram para o mundo do crime. Praticamente todos. Quem não voltou morreu. São poucos os que furam o cerco como eu. Tem um que sempre me encontra e pergunta: “O que a igreja está fazendo por você?” Eu sempre digo que estou caminhando com a igreja e a igreja está caminhando comigo. E olha que naquela época eu estava desempregado. Ele me ofereceu dinheiro, mas eu não peguei. Aí me levou até o carro dele e me ofereceu armas, drogas, plano de assalto. Recusei tudo e esperei em Deus. Estou lutando pra não voltar pra aquela vida.[9]

Mesmo quando o entrevistado se propõe a viver de modo diferente, as oportunidades lhe são raras. Para a sociedade ele será sempre uma ameaça, um “vagabundo” e, no entendimento do entrevistado, isso se dá por duas razões. Primeiramente, pelo que ele chama de “orgulho das pessoas”, pois alguns poderiam ajudá-lo e não o fazem, e também por causa do preconceito social.

Minha grande dificuldade é o desemprego. Conheci pessoas que realmente poderiam ajudar, mas não me ajudaram. Acho que elas são orgulhosas. Tem também o preconceito das pessoas. Um dia uma mulher disse pra mim, por telefone: “Eu não mexo com vagabundo”. Eu contei a ela minha situação. Expliquei que eu havia sido preso, mas queria mudar de vida. Foi aí que ela disse: “Eu não mexo com vagabundo”. Ela bateu o telefone na minha cara.[10]

Conquanto os entrevistados afirmem ser o desemprego sua grande dificuldade, ao tentar voltar ao mercado de trabalho, há de se considerar o viés da desqualificação desses indivíduos. O problema do ex-presidiário transcende ao desemprego e perpassa o ethos do trabalho, desembocando na desqualificação destes para ocupar um lugar no real mercado de trabalho, que exige das pessoas mais do que saber fazer, eventualmente, bolas, bandeiras, e enfeites para geladeiras.

 

O estigma exponenciado pela falta de credibilidade

O ex-presidiário enfrenta ainda o dilema da perda de auto-confiança e de qualquer expectativa de aceitação. A sociedade não mais confia nele. Há agora uma completa falta de credibilidade da sociedade, em relação a tudo o que o ex-presidiário faz. O ex-presidiário experimenta a sensação de uma completa impotência para se impor. Percebe que após cumprir sua pena, continua a ser perseguido pelo fantasma da prisão.

Depois que a gente sai da prisão nunca tem razão, principalmente diante da polícia. O baixo que a gente falar, ainda tá falando alto. A polícia, mesmo sabendo que a gente tá falando a verdade, não aceita a gente. Pra eles a gente tá mentindo. [11]

O entrevistado Paulo Azevedo dos Santos, ao sair da prisão, resolve mudar completamente de vida; tanto que decide ser, doravante, um segurança particular, e não mais um ladrão. O ex-condenado descobre, então, que não tem mais crédito na sociedade. Seu crédito é alto tão somente entre os bandidos. Assim, após vários embates acaba conseguindo matricular-se no curso de vigilante.  A sociedade, contudo, não o aceitará nessa condição. Após o curso as portas continuam fechadas, pois a um ex-condenado é vedado o direito de garantir a segurança de bens móveis e imóveis. Esses bens eram, outrora, os objetos de desejo e da ação expropriatória do criminoso. Se tanto, conseguirá apenas ser auxiliar de limpeza. Àquele considerado o responsável pelas sujidades sociais é posto em suas mãos vassouras, baldes e panos-de-chão para, metaforicamente, limpar sua consciência dos crimes cometidos no passado.

Quando eu saí da prisão resolvi fazer um curso de segurança, pra ser vigilante. Não foi fácil. Teve gente querendo me impedir de fazer o curso pra ser vigilante. Foi preciso um atestado de reabilitação tirado em cartório, pra que eu pudesse fazer o curso. Mesmo pra tirar esse atestado em cartório foi preciso que um advogado me defendesse. O Serapi pagou o advogado pra me defender e eu poder tirar o atestado de reabilitação no cartório. Só com ele é que eu consegui fazer o curso de segurança, pra trabalhar de vigilante. O curso demorou um ano. Um ano de muito sofrimento. Depois que acabei o curso me ofereceram um emprego de auxiliar de limpeza. Não que eu tenha alguma coisa contra auxiliar de limpeza. Mas é que eu fiz um curso com muito sofrimento, pra ser vigilante. Como auxiliar de limpeza eu não tenho condições de pagar um curso de informática para o meu filho.[12]

Dentre as poucas opções de trabalho oferecidas, o entrevistado teve sua melhor oportunidade ao ser contratado para a função de serviços gerais numa grande instituição de ensino em Brasília. Contudo, novamente, o medo, a insegurança e a falta de credibilidade o impediram de continuar no ambiente. Segundo o entrevistado, ali foi vigiado constantemente, e essa vigilância tinha como propósito, indiretamente, punir também quem o indicara para aquele cargo. Ao punir aquele que o indicara ao cargo, a sociedade também pune e destrói as redes existentes de sua improvável reinserção.

Depois que eu sai da prisão eu trabalhei no Colégio Ciência[13], mas larguei. Larguei porque percebi que o gerente ficava me vigiando. Eu percebi que ele queria me pegar pra ferrar com aquele que me colocou lá dentro. Aí eu saí. Quando eu saí eu falei pro rapaz que me pôs no trabalho. Isso foi há oito anos. Não foi fácil. Ficam vigiando a gente.[14]

Não merecendo credibilidade, o ex-presidiário cristaliza sua auto-estigmatiza-ção.[15] Dificilmente alguém lhe confiará uma tarefa. Desse modo resta ao condenado vitalício sobreviver em condições bastante precárias e na informalidade.

Não tem sido fácil precisar trabalhar e não ter emprego. Ninguém me deu emprego. Todo mundo desconfia da gente. Como eu não encontrava emprego fui vender salgados no setor comercial. Comprei uma caixa de isopor e todo dia eu comprava salgados e revendia num ponto lá no Setor Comercial. Eu comprava os lanches no Conjunto Nacional e revendia no Setor Comercial. Eu tinha um dinheirinho na FUNAP (Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso). Quando a gente trabalha na cadeia a gente recebe uma parte. Fica uma parte pra mim, outra parte para um beneficiado que o preso escolhe, Geralmente é alguém da família. E a outra parte fica depositado numa conta pra mim, que pode ser retirada a cada três meses. Com esse dinheirinho é que eu comprei a caixa de isopor e os salgados. [16]

Mesmo quando o ex-presidiário consegue fazer parte de uma igreja, no caso do entrevistado – uma igreja evangélica -, a perda de confiança é sentida intensamente. Falta-lhe credibilidade como pessoa e seu caráter será constantemente questionado pelos que o cercam. Para o entrevistado jamais será capaz de livrar-se dessa pena moral, evidenciada pela falta de credibilidade que o incapacita socialmente.

Há uma dificuldade que eu passo até hoje e acho que nunca vou me livrar dela. É a falta de adaptação. Todo mundo fica me olhando como um ex-preso. É muito difícil as pessoas confiarem na gente de novo. Mesmo na igreja. Na igreja eu ouvia muita conversa, quando saí. E ainda ouço até hoje. Eu ouvia conversa do tipo “Pau que nasce torto, morre torto”. Hoje os comentários são menos, mas ainda tem um comentário aqui, outro ali.[17]

O entrevistado percebe que boa parte de sua falta de crédito como pessoa tem como fonte o discurso de alguns líderes de sua igreja, em flagrante oposição ao mandamento bíblico do perdão. Conquanto a práxis seja de apartação, o discurso ouvido pelo entrevistado no grupo religioso é pseudo-inclusivo. Esse discurso, que pretensamente o convida a incluir-se na igreja, tem como propaganda temas como “libertação” e “novo nascimento”.

O entrevistado reconhece que sua igreja o socorreu em alguns momentos, por meio de algumas pessoas. Contudo, alguns membros da igreja o marginalizavam intensamente, no início de sua entrada no grupo, não o aceitando como um dos pares.[18] Apesar de a exclusão ter diminuído com o passar dos anos, ainda é sentida pelo entrevistado.

Fico vendo todos falando sobre “libertação”, “novo nascimento”, mas me tratavam como marginal. No início foi muito difícil. Havia um professor que me visitava na prisão. Ele era presbítero da igreja e não sabia que de vez em quando eu tinha direito a “Saidão”. Ele ia lá no presídio e pregava pra gente. Animava a gente. Um dia eu estava de “Saidão” e fui à igreja. Lá encontrei o professor presbítero, mas ele não me reconheceu. Esse presbítero estava lecionando na Escola Dominical e na sua aula ele começou muito tipo de gente e citou também os ladrões. Foi criticando e dizendo que toda aquela gente não tinha conserto. Era gente ruim. Eu não agüentei e me levantei no meio de todos e disse a ele que, se ele não acreditava na recuperação do homem, porque, então, ele me visitava na prisão? Por que ele visitava a mim e aos meus companheiros de cela e pregava o Evangelho? Nesse momento faltou chão debaixo dos pés dele. Ele nunca mais voltou ao presídio.[19]

Para o entrevistado sustenta-o na igreja o “amor de Deus”, embora tenha se decepcionado com a incoerência entre discurso e prática de alguns líderes na igreja. Para ele “os homens sempre [o] olham atravessado”, o que sugere, inconscientemente (para quem feriu vários homens, que tiveram seus corpos atravessados por projéteis de revólveres e fuzis), que o ex-presidiário tornara-se, assim, por sua vez, ferido por projéteis tão mortais quantos os de outrora, quando transitava no submundo do crime. Os projéteis que o “atravessam” hoje são desferidos por olhares que refletem um processo de punição ininterrupto. “O que tem me sustentado é o amor de Deus. Os homens sempre te olham atravessado”. [20]

A falta de credibilidade faz com que o ex-presidiário entenda que o estigma o acompanha continuamente, pois é parte de si próprio, de sua auto-imagem. “Depois que eu saí da prisão, pessoas que eu não esperava começaram a falar de mim. Eu, que sou ex-presidiário, posso passar 30 anos livre, que as pessoas ainda pensam que não me recuperei. É muito difícil”. [21]

Nesse caso, o ex-presidiário resolve agir com honestidade. Por vários anos foi desonesto, ocultou-se, mentiu quanto ao passado criminoso e à condenação. Após o tempo de reclusão decide ser verdadeiro, em busca de apoio da sociedade para livrar-se do banditismo. Porém, sua honestidade, ao contar quem é de fato, não lhe garante apoio, antes o compromete ainda mais, pois a sociedade não aceita que um transgressor possa se recuperar, principalmente após sua permanência em uma prisão.

Minha dificuldade maior é a falta de oportunidade. A gente bate em várias portas e ninguém te dá oportunidade. Quando eu vou pedir emprego eu digo quem sou. Eu digo quem sou, digo que quero uma oportunidade e as pessoas não dão. As pessoas não ajudam a gente. Acho que fica todo mundo com medo da gente… Desconfiança.[22]

O ex-presidiário também enfrenta a falta de credibilidade alimentada pela imprensa sensacionalista e irresponsável. Para o entrevistado a imprensa afirma que o transgressor é sempre um transgressor, mesmo após cumprida a pena prevista pelo crime realizado.

No Ceasa[23] eu consegui meu primeiro emprego. Mas, logo, logo espalhou que tinha ex-presidiário trabalhando no Ceasa. Todos ficavam falando da gente. Ficavam perguntando como era a vida na Papuda. Um dia alguém tirou foto da gente e saiu na Revista Veja, com uma legenda embaixo dizendo que a gente tava tirando emprego de pai de família. Como se a gente não fosse pai de família. Hoje eu trabalho no Hospital de Taguatinga. Trabalho lá de “Serviços Gerais”. Estou lá há um ano e quatro meses.[24]

A imprensa precisa de acontecimentos (SOUZA, 2004). Sem acontecimentos ela não sobrevive. Por isso, nem tudo que é notícia deve ser anunciado, e sim, apenas os acontecimentos. Acontecimentos não as notícias inusitadas; estas dão audiência, mesmo quando não expressam completamente a realidade. Noticiar que ex-presidiários estão sendo empregados no lugar de cidadãos comuns, que nunca foram presos, é um acontecimento maior que a notícia de presos aprendendo a trabalhar para não mais incorrerem nos erros passados.

 

 A miséria fora da prisão

O indivíduo transgressor, após cumprir sua pena na instituição de reclusão, recebe outra sentença irremediável, a ser cumprida rigorosamente. O ex-presidiário torna-se também prisioneiro de sua própria condição social, sem direito à esperança de algum dia escapar. Apesar da dura realidade imposta ao ex-presidiário, há nele ainda um anelo por tempos melhores.

Meu sonho é o de comprar um lote em qualquer lugar. Hoje eu moro de aluguel e não é fácil. Eu não consigo arrumar emprego. A gente paga R$ 120,00 de aluguel. A renda da minha mulher é de mais ou menos R$ 300,00. A gente não tem ajuda de ninguém. A gente vive com o que sobra, com R$ 180,00 por mês pra comer. (…) No domingo, minha mulher ganha verduras no “Sacolão”. Isso ajuda a gente um pouco. [25]

Eu e minha mulher vive (sic.) com R$ 300,00 por mês. Isso, sem descontar nada. Eu vivo mesmo é com R$ 120,00 por mês. O aluguel é R$ 180,00. Pago R$ 15,00 de água, R$ 15,00 de luz, e ainda tem fralda pro nenê. Minha mulher e eu compramos a fralda mais barata, porque o salário não dá. Essa semana ficamos sem arroz dois dias. Vendi mel e comprei arroz. Quando a gente ganha uns dez reais a mais, a gente compra uma banana, uma cebola, uma coisinha assim.[26]

O entrevistado Geraldo dos Santos, excepcionalmente conseguiu trabalho num dos escritórios de uma das torres do Shopping Liberty Mall, em Brasília/DF. Ironicamente, no “Centro Comercial da Liberdade”, não é capaz de conquistar essa liberdade. Com filhos adolescentes, esposa desempregada, todos sobrevivem sob a linha da miséria. Contudo, o entrevistado considera-se feliz por ter uma família e alguns amigos que o socorrem nas horas mais difíceis.

Eu trabalho hoje no Liberty Mall, há quatro anos e meio. Saí da prisão em 1996 e logo consegui um trabalho tercerizado. Depois é que fui para o Liberty Mall. Eu ganho muito pouco. Minha mulher está desempregada. A gente vive com mais ou menos 200 reais por mês.[27]

 

A perda de identidade

A família exclui o transgressor e o expõe a um processo anômico grave, contínuo. A partir do crime cometido, muitos familiares afastam-se completamente e o proscrevem. A transgressão, não raro, tira-lhe a legitimidade parental. Sua pena, a depender de sua família original, pode tender a ser mantida indefinidamente. A segregação por parte da família se trata de um mecanismo consciente ou inconsciente de autodefesa diante do preconceito social e de eventuais resíduos de relações de dívida do egresso.

Ao sair da prisão eu tive muitas dificuldades. Minha família me isolou. Durante os anos de prisão minha família me abandonou. Nunca foram me visitar. Só uma tia que me visitou. (…) Depois que eu saí da prisão minha família continuou não me dando apoio. Eles não querem nem me ver. [28] Quando eu fui preso minha esposa me abandonou.[29]

Não apenas a família pode rejeitar o transgressor, mas também a vizinhança. Não se admite que um transgressor more entre os demais vizinhos, embora tenha cumprido a pena equivalente ao crime cometido. Teme-se qualquer aproximação devido ao potencial contágio com um ser estigmatizado e de imprevisibilidade perversa.

Depois que eu saí da prisão, meus maiores problemas foram a rejeição e a discriminação dos meus vizinhos. Fui muito discriminado e muito rejeitado. Eu não me mudei da minha casa, Todos me conheciam antes como policial e todos ficaram sabendo que eu tinha sido preso por ter me envolvido com o crime. Depois que eu saí da prisão voltei para a minha casa, mas aí os vizinhos não me aceitaram mais. Mas até hoje estou lá. É lá que é minha casa. É la que eu vou morar. [30]

 

A perda de uma cidadania ornamental e inexistente

O ex-presidiário, não raro, enfrenta o dilema da perda da cidadania ornamental, agravada pela falta de seus documentos pessoais. A maioria sequer os teve algum dia. O ex-presidiário, ao deparar-se com a falta de documentação que ateste sua cidadania e legitime sua presença na sociedade, tem de transpor a barreira da burocracia, tarefa quase impossível a indivíduos semi-analfabetos. Somam-se a isso os parcos recursos financeiros do egresso e o medo da máquina burocrática existente.

Quando saí da Papuda[31] eu (…) não tinha documentos. Só tinha a identidade. Sem documento não tinha emprego. Eu não tinha CPF, Título de Eleitor, Carteira de Trabalho… Eu não tinha nada. Só tinha a Carteira de Identidade. O pessoal me enganou demais. Tive que ir pra vários lugares, muitos deles eu fui a pé, e não adiantou nada. Fui ao Banco do Brasil e tive problemas com o CPF. Eu não tinha CPF. Nem sabia o que era isso. Tive de ir à Junta Militar para tirar minha carteira de reservista. Depois tive de ir à Junta Eleitoral para retirar meu título de eleitor. Para retirar o título de eleitor fui ao posto do Tribunal Regional Eleitoral, na Rodoviária. Depois fui à Receita Federal tirar meu CPF. No dia seguinte fui novamente à Receita Federal, depois fui ao Banco do Brasil. Em cada lugar que eu ia eu era destratado. Na Receita Federal a secretária me destratou muito. Nem queria me atender. Eu tentava de todas as formas, mas ela me ignorava ou me destratava. Com muito custo consegui falar com o gerente da Receita Federal. Esse sim, me tratou bem. Eu contei minha estória pra ele. Falei que eu tinha acabado de sair da Papuda depois de vários anos preso e ninguém me ajudava. Ele me entendeu e fez o que pôde para me ajudar. Meu grande problema para retirar meu CPF é que havia um outro Maurício de Lima, com a mesma data de nascimento. Mas o gerente me ajudou e resolveu o meu problema. Depois fui a Samambaia, no Fórum do TRE para retirar o título de eleitor. Contei a minha estória novamente e o atendente me ajudou. Sai de lá com o número do título de eleitor, apesar de não ter conseguido o Título, naquele momento. De lá voltei para a Junta Militar, no Plano Piloto. Me disseram que era lá, mas estava errado. Era em Samambaia mesmo. Tive de voltar para o Fórum de Samambaia. Minha maior dificuldade foi tirar os documentos. Eu fiz tudo isso a pé. Poucas vezes eu andei de ônibus. Eu não tinha dinheiro.[32]

A perda de cidadania implica a perda de identidade. Essa perda de identidade é tão intensa que os presidiários ao tomarem conhecimento do iminente reingresso à vida fora da prisão, temem não mais conseguirem viver fora da prisão, pois estão encarcerados em si mesmos. Alguns entrevistados demonstraram este temor:

Outro grande problema é o relacionamento. “Como vou fazer quando sair daqui?” “Como será o meu relacionamento com a minha esposa? Com o meu filho?” Todos na prisão pensam assim. A gente fica com medo de não saber viver aqui fora novamente. [33]

 

Conclusão

A sociedade civil não processa o problema da agressão e da transgressão, em virtude da expectativa de expurgá-las e concentra-las fora de seus arraiais. Tratar em profundidade da agressão e da criminalidade seria criar mecanismos pedagógicos eficazes de recuperação do transgressor para que esse pudesse ser reabilitado e devolvido ao meio social para, então, agir e comportar-se consoante as estruturas de plausibilidade, socialmente estabelecidos A proposta do Estado para o tratamento do transgressor está longe de ser concretizada efetivamente através dos meios prisionais, promíscuos e desumanizantes.

O Estado e a Sociedade não se importam de fato com o transgressor. Se se importassem envidariam efetivos esforços político-educativos para mudar o quadro de desintegração social no país. Ao invés de investir em uma reestruturação do sistema penal, o Estado encarcera os transgressores em uma micro-sociedade dominada pelo ódio e pela barbárie (FOUCAULT, 2000), retira-lhes o sentido de tempo, anula o direito de ir e vir e os pune impiedosamente sem lhes dar condições mínimas de ressocialização. Assim, a reclusão perde qualquer função educativa e se transforma em um campo traumático de pura punição: reflexo de uma sociedade ressentida, culpada e vingativa.

A agressão e a criminalidade sempre existira em qualquer sociedade. Porém, não tão intensa quanto nos atuais tempos em que se propalam, demagogicamente, a abertura política e a democracia. Em solo brasileiro nunca se verificaram índices de criminalidade tão altos. “O retorno à democracia efetuou-se pari passu com uma intensificação sem precedentes da criminalidade. O número de delitos já havia aumentado nos anos 70. Mas foi nos anos 80, no exato momento em que a abertura política se iniciava, que o crescimento das taxas de homicídio se acelerou, atingindo patamares até então desconhecidos e combinando-se a outras formas de violência múltiplas e fragmentárias” (PERALVA, 2000, p. 73).

Sem emprego, qualificação e recursos o ex-presidiário encontra moradia nos redutos periféricos e favelizados da região urbana, o que pôde ser observado nas entrevistas, pois todos afirmaram residir na periferia de Brasília. Ali se trava uma luta intensa entre viver honestamente e com fome, ou viver sem integridade, mas com recursos, ainda que mínimos, para a subsistência da família. É, sobretudo, no território da periferia que as condições antissociais se cristalizam, tornam-se normais e passam a ser vistas como um componente natural da sociedade a ser aceito por todos quantos a integram.

As ciências sociais insistem em manter uma relação de determinação monocausal entre pobreza e criminalidade, expressa em uma geopolítica das mortes violentas, das intervenções policiais e da população das prisões. A associação entre crime e pobreza incontornável é uma fórmula reducionista que criminaliza a priori a miséria. “Noções como as de ‘revolta’, e mais recentemente a de ‘privação relativa’, reconstróem a relação entre crime e pobreza ali mesmo onde havia existido a vontade de negá-la” (PERALVA, 2000, p. 81).

Os ex-presidiários sempre foram e o serão estigmatizados e descriminados numa sociedade consumista, moralista e encantada pela estética da barbárie. Ora, o consumismo capitalista estimulado paradigmaticamente na sociedade ocidental impõe diferenças sociais e exalta os que desfilam vestidos com os símbolos visuais que ostentam poder social. Automóveis, imóveis, vestuário, e uma infinidade de outros símbolos, numa sociedade consumista, têm a tarefa de distinguir objetivamente quem pode exibir-se na sociedade com as griffes de poder diante dos despossuídos e em estado de prostração político-social. O verbo “ter” torna-se sinônimo de “ser”, o que implica a negação dos valores universais da cultura. Aos ocupantes dos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira, desqualificados para o mercado de trabalho, o qual cada vez exige maiores níveis de educação e qualificação, são bombardeados pelo terrorismo consumista e estão frente a um dilema: ou conformam-se com a miséria ou rebelam-se inconscientemente. É através da transgressão das leis sociais que muitos indivíduos conquistam os símbolos de poder, a fim de usufruí-los perversamente.

Outrossim, os que transgridem as leis sociais dificilmente retornarão ao campo da confiabilidade social. Mesmo após terem sido rigorosamente punidos continuarão sob os ditames de sua transgressão, pois tornaram-se eternos apenados, mediante a internalização de um estigma e de uma culpa irreparável. Os demais, os poucos que desejam desesperadamente sua recomposição social, esbarram na intransigência social instransponível dominante. Resta-lhes submeterem-se ao sistema de dominação e engordar as fileiras de milhões de brasileiros que convivem com a usurpação de sua cidadania.

 

Bibliografia

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WEBER, Max. Ciência e Política. São Paulo: Cultrix, 1999.

 

Notas

[1] Dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen – do Departamento Penitenciário Nacional / Ministério da Justiça – Governo Federal.

[2] Entrevista concedida por José de Sousa. O entrevistado tem 32 anos e é “casado” há nove anos com sua atual mulher. Ficou detido por 10 anos e 7 meses na Papuda por homicídio. Segundo o entrevistado, o crime ocorreu após uma discussão em sua casa. Antes de sua prisão o entrevistado era solteiro e administrava um pequeno bar na cidade de Ceilândia/DF.

[3] Entrevista concedida por José de Sousa. Vide descrição anterior.

[4] Globalização é fenômeno surgido no pós-guerra, quando a economia se internacionalizou a partir de intenso crescimento do comércio e de investimentos de capital externo (RATTNER, 1995). Gorender acrescenta que a globalização surgiu apenas 30 anos após a segunda grande guerra mundial, pois “a economia capitalista atingia elevadas taxas” (GORENDER, 1995, 94).  Ora, a globalização pode ser entendida sob vários aspectos. Contudo, todas as formas de se entender a globalização remetem a uma “crescente influência que os processos econômicos, sociais e culturais que ocorrem na esfera internacional têm sobre esses mesmos processos nos níveis nacional ou regional” (DIAS, 2003, 154).  A globalização atualmente tornou-se parte indissociável do capitalismo por ter provocado uma “irresistível e irreversível troca de valores econômicos e culturais” (HARDT; NEGRI, apud DEMO, 2002, 175).

[5] Entrevista concedida por Antônio Pereira, 33 anos, casado. Foi preso por homicídio e recebeu pena de 12 anos de reclusão. Ficou preso por quatro anos.

[6] Informação concedida pelo pesquisador Cláudio Silva da Cruz, do Departamento de Tecnologia da Informação, da Universidade Católica de Brasília.

[7] Neoliberalismo é entendido como doutrina política que desonera o Estado de suas obrigações sociais, provocando uma privatização dos bens comuns à sociedade, tais como: saúde, educação, segurança, etc. No neoliberalismo o Estado, em última instância, se distancia do cidadão.

[8] Entrevista concedida por Fernando Oliveira, 39 anos, casado há três anos. Tem quatro filhos, sendo apenas um com a atual esposa. Com a esposa anterior teve dois filhos, e com a primeira mulher, um filho. Ficou preso, por furto em residências, durante 3 anos e 8 meses. O entrevistado é de estatura mediana, medindo cerca de 1,70 de altura, cor clara, falante, rápido em suas respostas.

[9] Francisco Lima, 50 anos, casado há 20 anos, tem filhos. O mais velho é filho só da esposa. Fora preso por vários crimes como roubo, homicídio, latrocínio, assalto à mão armada, etc. Sua pena acumulou um total de 96 anos. “Minha pena, se fosse cumprida até o final só terminaria em 2055”. Cumpriu pouco mais de 10 nos de reclusão. Mora no Jardim Oriente, em Valparaíso/GO e freqüenta atualmente a Igreja Assembléia de Deus.

[10] Entrevista concedida por Rodrigo Almeida, 24 anos, solteiro. Cumpriu pena de quatro anos por assalto à mão armada.

[11] Entrevista concedida por Fernando Oliveira, 39 anos, casado há três anos. Tem quatro filhos, sendo apenas um com a atual esposa. Com a esposa anterior teve dois filhos, e com a primeira mulher, um filho. Ficou preso, por furto em residências, durante 3 anos e 8 meses. O entrevistado é de estatura mediana, medindo cerca de 1,70 de altura, cor clara, falante, rápido em suas respostas.

[12] Entrevista concedida por Fernando Oliveira, 39 anos, casado há três anos. Tem quatro filhos, sendo apenas um com a atual esposa. Com a esposa anterior teve dois filhos, e com a primeira mulher, um filho. Ficou preso, por furto em residências, durante 3 anos e 8 meses. O entrevistado é de estatura mediana, medindo cerca de 1,70 de altura, cor clara, falante, rápido em suas respostas.

[13] Nome fictício.

[14] Entrevista concedida por Fernando Oliveira, 39 anos, casado há três anos. Tem quatro filhos, sendo apenas um com a atual esposa. Com a esposa anterior teve dois filhos, e com a primeira mulher, um filho. Ficou preso, por furto em residências, durante 3 anos e 8 meses. O entrevistado é de estatura mediana, medindo cerca de 1,70 de altura, cor clara, falante, rápido em suas respostas.

[15] A perspectiva de uma vida em sociedade perde todo o sentido e significado para o infrator, pois o deslocamento moral inconsciente cristaliza-se, à medida que se submete aos processos de inculcação de sua autonegação no contexto carcerário. A internalização traumática do estigma é suficiente para imprimir-lhe a sensação de estar sendo permanentemente vigiado como bandido, ate mesmo, paradoxalmente, quando não usa mais os uniformes da prisão. (GOFFMAN, 1996; GOFFMAN, 1988; GOFFMAN, 1968). Ao transitar pela cidade, o indivíduo, livre de seus uniformes de bandido, sente-se como tal, mesmo não os vestindo. Sua auto-imagem os reflete como se lhe estivessem colados à pele. O uniforme está sobretudo em sua mente, colado a seu inconsciente. Aonde quer que vá o ex-presidiário, após cumprir seus dias de restrição de liberdade, sente-se um prisioneiro, um bandido. Mesmo vestindo-se igual aos demais pares em liberdade, sente-se preso e discriminado em um campo de concentração imaginário. A luta contra o poder estigmatizante da uniformização que lhe foi imposto não lhe garante romper os limites imanentes do universo concentracionário, gravados indelevelmente em sua mente. Caso o ex-presidiário não consiga livrar-se de seus uniformes de presidiário, restar-lhe-á procurar a companhia de seus iguais. Os outros ex-detentos que o compreendem, não o ameaçam moralmente e falam a língua da exclusão.

[16] Entrevista concedida por Roberto Guimarães, 29 anos, casado. Ficou preso durante oito anos e cinco meses, por homicídio.

[17] Francisco Lima, 50 anos, casado há 20 anos, tem filhos. O mais velho é filho só da esposa. Ora preso por vários crimes como roubo, homicídio, latrocínio, assalto à mão armada, etc. Sua pena acumulou um total de 96 anos. Minha pena, se fosse cumprida até o final só terminaria em 2055. Cumpriu pouco mais de 10 nos de reclusão. Mora no Jardim Oriente, em Valparaíso/GO e freqüenta atualmente a Igreja Assembléia de Deus.

[18] O sagrado e a violência são fenômenos universais que apontam para dificuldades de ordem conceitual e de delimitação empírica. Os deuses, os mortos e o sagrado integram um contexto de substituição sacrificial, pois “o jogo do sagrado e o jogo da violência são apenas um. Sem dúvida, o pensamento etnológico dispõe-se a reconhecer, no seio do sagrado, a presença de tudo o que pode ser recoberto pelo termo violência. Mas ele acrescentará imediatamente que há também, no sagrado, algo de diferente e mesmo contrário à violência. Há tanto a ordem quanto a desordem, tanto a paz quanto a guerra, tanto a criação quanto a destruição” (GIRARD, 1998, p. 323). Durkheim, por sua vez, afirma que “onde a fé religiosa é muito intensa, muitas vezes ela inspira homicídios” (DURKHEIM, 2000, p. 463). A violência está sempre presente na sociedade. Uma sociedade não violenta, na verdade, é tão somente uma sociedade com um rígido controle da latente violência. Esse controle, certamente, é um controle violento de combate à violência, de modo que a sociedade sempre manterá um grau de violência, ora na ilegalidade, ora na mais completa legalidade, como fator de combate à violência ilegal. A religiosidade tem um relacionamento estreito com a violência. A religiosidade e a violência não são dois fenômenos excludentes. Antes, se completam, se compensam e se equilibram. A violência mantém a religiosidade num determinado grupo social, e esta mesma religiosidade incita à violência, neste determinado grupo, como um instrumento de libertação de tudo quanto oprime a fé professada pelos indivíduos do referido grupo. A observação da relação entre os fenômenos violência e religiosidade, num determinado grupo social, mostra que essa relação é o resultado de motivações pessoais religiosas e não religiosas, pois “a mistura de impulsos religiosos e de impulsos egoístas explicam os fenômenos sociais” (WEBER, 1999, p. 23). Trata-se, portanto, de romper com o senso comum e demonstrar cientificamente que a religiosidade expoencia a violência. A relação dialética entre a religiosidade e o comportamento violento é um fator a ser analisado com muita atenção. Ora, o rompimento com o conhecimento vulgar é essencialmente necessário, pois “a pesquisa científica organiza-se em torno de objetos construídos que não têm nada em comum com as unidades separadas pela percepção ingênua” (BOURDIEU, 1999, p. 46). Portanto, a ruptura com o senso comum, segundo o qual a religiosidade dissipa e extingue a violência, implica quebra de paradigmas teóricos e empíricos tradicionais. Esse exercício mental é uma “primeira ruptura”. De fato, “o senso comum, o conhecimento vulgar, a sociologia espontânea, a experiência imediata, tudo isso são opiniões, formas de conhecimento falso com que é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico, racional, válido” (SANTOS, 1989, p. 31).  Toda religião pede um sacrifício, e se não há sacrifício não é religião. Ora, “a função do sacrifício é apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão de conflitos” (GIRARD, 1998, p. 26), além de garantir a própria dinâmica da violência sacrificial. Essas tempestades de violência, culminando quase sempre na morte de um dos indivíduos pertencentes ao grupo social, são verificadas nas sociedades religiosas, o que permite a compreensão do aumento da violência em relação direta com o aumento da religiosidade em âmbito global. Nas sociedades religiosas, o lugar da dúvida é na fogueira, para que não se contrarie o monopólio hierárquico eclesiástico da verdade. Portanto, o corpo do sacrifício garante a hegemonia e o monopólio da verdade e da força. A sociedade religiosa não pode ser contrariada. Aqueles que tentam subverter a ordem religiosa são ritualmente sacrificados. Os deuses dessa sociedade exigem derramamento de sangue (rituais de expiação).

[19] Francisco Lima, 50 anos, casado há 20 anos, tem filhos. Vide descrição anterior.

[20] Francisco Lima, 50 anos, casado há 20 anos, tem filhos. Vide descrição anterior.

[21] Entrevista concedida por Antônio Pereira, 33 anos, casado. Foi preso por homicídio e recebeu pena de 12 anos de reclusão. Ficou preso por quatro anos.

[22] Entrevista concedida por Carlos Ribeiro, 25 anos, solteiro. Cumpriu pena de quatro anos, por assalto à mão armada.

[23] Ceasa é a “Central de Abastecimento”, cujo objetivo é o incremento da produtividade no setor de distribuição de produtos hortigranjeiros. As unidades da Ceasa são distribuídas no território brasileiro.

[24] Entrevista concedida por Antônio Pereira, 33 anos, casado. Foi preso por homicídio e recebeu pena de 12 anos de reclusão. Ficou preso por quatro anos.

[25] Entrevista concedida por José de Souza. Vide descrição anterior.

[26] Entrevista concedida por Fernando Oliveira, 39 anos, casado há três anos. Tem quatro filhos, sendo apenas um com a atual esposa. Com a esposa anterior teve dois filhos, e com a primeira mulher, um filho. Ficou preso, por furto em residências, durante 3 anos e 8 meses. O entrevistado é de estatura mediana, medindo cerca de 1,70 de altura, cor clara, falante, rápido em suas respostas.

[27] Entrevista concedida por Geraldo dos Santos, 38 anos, casado há 15 anos, três filhos. Cumpriu pena de um ano e nove meses, por assalto à mão armada. Como era policial militar, também foi exonerado de sua função.

[28] Entrevista concedida por Roberto Guimarães, 29 anos, casado. Ficou preso durante oito anos e cinco meses, por homicídio.

[29] Entrevista concedida por Augusto Linhares, 35 anos, casado, quatro filhos. Cometeu o crime de latrocínio e ficou preso por 12 anos e sete meses.

[30] Entrevista concedida por Geraldo dos Santos, 38 anos, casado há 15 anos, três filhos. Cumpriu pena de um ano e nove meses, por assalto à mão armada. Como era policial militar, também foi exonerado de sua função.

[31] Nome popular dado à Penitenciária do Distrito Federal.

[32] Entrevista concedida por Augusto Linhares, 35 anos, casado, quatro filhos. Cometeu o crime de latrocínio e ficou preso por 12 anos e sete meses.

[33] Entrevista concedida por Euclides da Silva, 38 anos, casado há dez anos. Cometeu o crime de latrocínio e cumpriu 9 anos de pena na Papuda.