Desde o início da era cristã temos dificuldades quando o assunto é sexo. Queremos todo o seu prazer, mas não a sua culpa, toda a sua liberdade, mas não suas responsabilidades. Queremos o êxtase sexual e ainda assim sermos considerados filhos de Deus. Por que não? Não é possível? É incompatível uma vida santa e ao mesmo tempo repleta de prazer sexual? Ao observar a história da igreja percebemos que muita culpa foi jogada sobre os cristãos, quando o assunto era sexo.
Apesar de Deus ter criado seus filhos sexuados para que procriassem e também se apropriassem do prazer sexual, ao longo dos anos, esses filhos foram associando sexo a pecado, mesmo quando a relação sexual era realizada no casamento. É bem verdade que há muitos comportamentos sexuais pecaminosos, sob a perspectiva cristã, mas também é igualmente verdadeiro que, sob essa mesma perspectiva, também há santidade na vida sexual.
A igreja cristã tem problemas com a área sexual, mesmo quando o assunto é tratado na esfera conjugal, porque desde os pais da igreja (líderes cristãos dos primeiros séculos) o ensino eclesiástico associou a vida sexual ao pecado. Muitos pais da igreja, nos primeiros séculos (e mesmo mais tarde na época medieval) se equivocaram e imprimiram nos cristãos uma intensa culpa. Para eles, o sexo era uma força infernal que se opunha à busca pela santidade. Por isso, boa parte da liderança pastoral pregou abertamente uma conduta de vida contrária ao prazer sexual. Quanto menos sexo, mais santo se era. Logo, as pessoas mais virtuosas e santas eram as castas. Quem espontaneamente decidia não se casar era vista como uma santa alma cristã, alguém que se dedicou a buscar a Deus, e não os seus desejos próprios, alguém que abriu mão de suas paixões para viver para Deus. Por isso, os bons religiosos da época mantinham-se castos. Por isso, também, as prostitutas eram vistas como o último degrau de uma vida pecaminosa; ninguém estava mais abaixo delas na escala do afastamento de Deus.
Conquanto os pais da igreja buscassem consagração a todo custo, tiveram uma visão equivocada a respeito da santidade sexual. Aliás, a vida sexual na perspectiva patrística, em si mesma era um pecado diante de Deus. Para boa arte dos líderes cristãos dos primeiros séculos da era cristã, o sexo era entendido como uma afronta a Deus.
A atitude imperativa da igreja durante toda a idade média era de que o amor sexual era mau em si mesmo[2], e não diminuía a sua malignidade, mesmo quando usufruído pelos cônjuges no casamento[3]. Nos primeiros séculos da igreja cristã, a tendência anti-sexual e anticonjugal pregada por alguns líderes foi se tornando tão crescente que o imperador Domiciano Cesar decretou ser crime aqueles que defendessem a antisexualização da pessoa. Mais tarde, o imperador Adriano estendenderia essa proibição também aos que voluntariamente concordavam em ser castrados. Estes seriam punidos com a pena de morte, bem como os médicos que fizessem esse tipo de operação mutilatória.[4] Mesmo assim, Orígenes, (185 – 254 AD), alguns anos mais tarde, tomou o texto de Mateus 19.12 tão literalmente que se castrou antes de ser ordenado[5], acreditando que a extirpação de seu órgão genital eliminaria o desejo sexual e, consequentemente, as tentações que o afligiam nessa área.
Tertuliano (160-225 AD), considerado o pai da igreja latina, declarava sua repulsa ao sexo feminino ao afirmar que a mulher era a causa de toda a derrota humana e, como tal, deveria ser frontalmente combatida. Para ele, a mulher era a responsável pela queda em pecado.
Vós sois a porta do demônio; vós sois quem rompeu o lacre daquela árvore (proibida); vós sois a primeira desertora da lei divina; vós sois quem persuadiu aquele que o diabo não era bastante valente para atacar. Vós destruístes muito facilmente a imagem de Deus, o homem. Em virtude da vossa deserção – isto é a morte – até mesmo o Filho de Deus teve de morrer.[6]
Clemente de Alexandria (150-217 AD), por sua vez, chegou a afirmar: “Comete-se adultério com a própria esposa quando se mantém relações sexuais com ela como se fosse uma prostituta.” (Clementeapud Ranke-Heinemann, 1996, 62). Para Clemente, o ato sexual deveria ser realizado sem qualquer paixão, sem qualquer demonstração de desejo, sem qualquer calor sexual, pois a paixão sexual era pecaminosa e infernal. Assim, todo aquele que mantivesse relações sexuais, mesmo com a esposa, e no ato extravasasse seus desejos e paixões, cometia adultério, pois estaria se relacionando não com sua esposa, mas com outra – uma mulher quente sexualmente, enquanto a sua, ali no ato, também lutava consigo mesma para manter-se fria sexualmente.
Muitos anos mais tarde, Tomás de Aquino (1225-1274 AD), segundo os ensinos de Jerônimo (347-420 AD),[7] ainda pregava o não-prazer sexual. Para Tomás de Aquino, o homem que amava a esposa com muita paixão transgridia o bem do casamento e podia ser rotulado de adúltero, pois o fim do matrimônio, para ele, era a procriação e não o prazer.
Não é de admirar que a igreja da época era constituída de um mar de pessoas culpadas, mesmo estando casadas. Domingo após domingo os templos se enchiam de cristãos procurando expurgar seus “pecados sexuais”, cometidos no casamento. Marido e mulher, obviamente, não conseguiam viver contra o curso natural da vida que Deus lhes dera. Por isso, mantinham suas relações sexuais com paixão e culpa, por desejarem sexo, mas viverem debaixo de um entendimento de que estavam transgredindo uma ordem divina, um mandamento celestial.
Para Agostinho (354-430 AD), bispo de Hipona, a origem de tudo estava no pecado original, que fora transmitido aos descendentes de Adão por meio do sexo. Para ele, o fruto proibido no Éden era a relação sexual. Diante de sua experiência boêmia de vida pré-conversão, Agostinho passou a ver a mulher de forma negativa, chegando a considera-la de pouca utilidade, a não ser para procriação.
(…) não vejo que espécie de auxílio a mulher deveria prestar ao homem, caso se exclua a finalidade da procriação. Se a mulher não foi dada ao homem para ajudá-lo a gerar filhos, para que mais serviria? Para cultivarem a terra juntos? Se fosse necessária ajuda para isso, um homem seria de melhor auxílio para outro homem. O mesmo se há de dizer para o conforto na solidão. Pois muito maior prazer há para a vida e para a conversa quando dois amigos vivem juntos do que quando homem e mulher coabitam.[8]
Para Agostinho, o ato sexual era um ato inocente quando realizado no casamento, mas a paixão que acompanhava o ato sexual, essa sim, era pecaminosa.[9] Nessa mesma época, Ambrósio, (340-397 AD) pregava: “As pessoas casadas devem corar de vergonha com o estado em que estão vivendo” [10].
Os comentários cristãos medievais sobre o começo do Livro de Gênesis são um bom referencial para se aquilatar o valor que se dava ao casamento e ao sexo. Crisóstomo (344 – 407 AD) disse que antes da queda, Adão e Eva eram impossibilitados de terem relação sexual, pois a santidade em que viviam não lhes permitia tal procedimento.[11] Orígenes concordou com Crisóstomo e tinha inclinação à teoria de que, se o pecado não tivesse entrado no mundo, a raça humana teria se reproduzido de alguma maneira angélica e misteriosa, e não pela união sexual.[12]
Ora, essa mensagem pregada ao longo dos séculos criou toda uma cultura anti-sexo no ambiente cristão. Se o prazer sexual afasta o cristão de seu Deus, então esse cristão deve lutar com todas as suas forças para manter-se longe de uma vida sexual prazerosa. A igreja gradativamente foi criando uma cultura que associava a vida sexual ao pecado. Para tanto, além dos sermões anti-sexo, os líderes ainda eram orientados a fazer perguntas específicas nos confessionários, sobre a vida íntima do casal, buscando encontrar o “pecado” do prazer nas relações conjugais do confessante. Burchard (1006-1008 AD[13]), bispo de Worms, elaborou um manual, no qual os líderes das paróquias eram instruídos a perguntar aos homens detalhes de sua vida sexual.
Teve relações com sua esposa ou com outra mulher por trás, como os cachorros? Se teve, dez dias de penitência a pão e água. Teve relações com sua esposa durante o período de sua mestruação? Então, dez dias de penitência a pão e água. Se sua esposa foi à igreja depois de ter um bebê, mas antes de ser purificada, então, ela terá de fazer a penitência durante o tempo em que deveria ficar afastada da igreja. E se você teve relações com ela durante esse período, fará vinte dias de penitência a pão e água.[14]
Infelizmente, ao longo dos séculos, o sexo foi pouco a pouco sendo associado a pecado e se afastando do plano original do Criador, que era o de manter a sexualidade e a santidade no mesmo nível de espiritualidade. Nos anos que precederam a Reforma Protestante, um pregador de nome Yves de Chartres aconselhava os casais a não manterem relações sexuais às quintas-feiras, em memória à ascensão de Cristo; nem às sextas-feiras, em honra à sua crucificação; aos sábados, em honra à virgem Maria; aos domingos, em comemoração à ressurreição de Cristo, e às segundas-feiras, em respeito às almas falecidas, sobrando apenas aos casais a Terça e a Quarta-feira, na semana[15].
Essa herança teológica de combate ao prazer sexual, mesmo no casamento, venceu os anos e séculos e chegou até nós, nos dias modernos. Logo, não são poucos os cristãos que, professando a vida cristã, ainda hoje têm dificuldades em buscar ajuda médica e terapêutica para melhorarem seu desempenho sexual. Estes casais, consciente ou inconscientemente, têm um entendimento do prazer sexual como um problema a ser mantido sob controle, e não como uma bênção de Deus. Por isso, os cristãos se sentem desconfortáveis para tratar de sua sexualidade, para buscarem maior desempenho sexual, para se relacionarem tão somente pelo prazer sexual.
Mas… e a Bíblia? O que ela realmente diz a respeito da relação sexo e prazer? Basta uma leitura simples da Palavra de Deus e se perceberá que o Criador é a favor do prazer no sexo. É criação Dele, não apenas para procriação, mas também (e principalmente) para o prazer de seus filhos. O argumento lógico é que, diferente dos outros animais, nosso desejo sexual é constante, e não apenas nos períodos de gestação (no nosso caso, a cada nove meses). Deus nos fez assim, porque Ele quer que seus filhos desfrutem de intenso desejo sexual e se satisfaçam plenamente com seus cônjuges. Quando o assunto é casamento, o Espírito Santo nos diz nas Escrituras: “Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade, corça de amores e gazela graciosa. Saciem-te os seus seios em todo o tempo; e embriaga-te sempre com as suas carícias” (Provérbios 5.18-19). Observe que o saciar dos seios é “em todo o tempo” e o embriagar-se com as carícias deve ser realizado “sempre”, e não uma vez ou outra. Deus é a favor do prazer sexual.
Que você e o seu amor, firmados numa aliança de casamento, se deliciem com os prazeres sexuais que Deus colocou à sua disposição. Não perca tempo: compartilhe seus desejos sexuais com o seu amor, diga ao seu cônjuge suas fantasias mais secretas, sejam cúmplices do prazer. Relacionem-se sexualmente com exclusividade e intensidade. O Senhor, certamente, abençoará a alegria realizada em sua cama. Vivam sob o prazeroso plano original de seu Criador.
BIBLIOGRAFIA
BAILEY, Derrick Sherwin. Sexual Relation in Christian Thought. New York: Harper and Brothers Ed., 1959.
BOYARIN, Daniel, Israel Carnal – Lendo o sexo na cultura talmúdica, Imago Editora: Rio de Janeiro, 1994.
BRIFFAULT, Robert. The Mothers. New York: Macmillan Ed., 1927.
EISLER, Riane, O Prazer Sagrado – Sexo, Mito e Política do Corpo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
MESSENGER, E.C. The Mystery of Sex and Marriage. Westminster: Newman Ed., 1948.
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: record: Rosa dos Tedmpos, 1996.
RYKEN, Leland. Santos no Mundo: os puritanos como realmente eram. São José dos Campos: Editora Fiel, 1991.
SCANZONI, Letha Dauson. Sexuality. Philadelphia: Westminster Press, 1984.
[1] Messenger, E.C, The Mystery of Sex and Marriage, Westminster, Md., Newman, 1948.
[2] Bailey, Derrick Sherwin, Sexual Relation in Christian Thought, Harper and Brothers Ed., New York, 1959, pp. 19-166.
[3] Ranke-Heinemann, 1996, 59.
[4] Briffault, Robert, The Mothers, vol. 3, Macmillan Ed. New York, 1927, p.372. De acordo com Briffault, que cita Justino e Orígenes como fontes, muitos outros tiveram realizada a mesma cirurgia, conquanto a igreja oficialmente condenasse a prática mutilatória.
[5] Tertuliano apud Stott, 1995,12.
[6] Jerônimo também pregava que uma vida santa era oposta ao prazer sexual.
[7] Agostinho apud Ranke-Heinemann, 1996, 101.
[8] Ryken, Leland, Santos no Mundo: Os puritanos como realmente eram, Editora Fiel, São José dos Campos/SP, p.54.
[9] Ryken, Leland, Santos no Mundo: Os puritanos como realmente eram, Editora Fiel, São José dos Campos/SP, p.55.
[10] Ibid., p.55.
[11] Ibid., p.55.
[12] Alguns historiadores, no entanto, entendem que Burchard foi bispo de Worms de 1006 a 1025, data de sua morte.
[13] Ranke-Heinemann, 1996, p.150.
[14] Citado em Letha Dauson Scanzoni, Sexuality (Philadelphia: Westminster Press, 1984), p.46.