A violência é a revolta por uma insatisfação social, pois a desigualdade social é, sobretudo, uma forma de violência. Violência seria a luta desesperada para corrigir o que o indivíduo julga serem injustiças sociais. Ora, a violência associada à adolescência tem sido debatida às largas nos últimos anos. Contudo, boa parte dessas discussões não se preocupa com os fatores causais, mas antes se debruça sobre os efeitos da violência numa vã tentativa de explicar o fenômeno a partir de sua redução a fatos sem a preocupação de analisá-los de modo isento.

Compreender o fenômeno da violência num contexto prisional, cujos atores são adolescentes, é uma tarefa que exige um olhar voltado para as causas imediatas e mediatas, mais do que para seus efeitos, pois “mudanças tão profundas estão em jogo que é legítimo acentuar as inflexões e as rupturas da violência, mais do que as continuidades” (WIEVIORKA apud WAISELFISZ, 2002, p. 17).

Em se tratando de violência no mundo juvenil, os sistemas de relações sociais têm sido pouco explorados ou mesmo ignorados. O estudo da violência entre adolescentes reclusos requer análise de seu sistema de relações sociais. Cada experiência vivida pelo adolescente infrator e, neste caso, privado de sua liberdade, é de fundamental importância para a compreensão da dinâmica da violência num ambiente prisional, cujos atores eram, antes da reclusão, de uma peça montada em um cenário de transgressão social. Ora, “a violência contemporânea pode ser analisada como um vasto conjunto de experiências que, cada uma à sua maneira, traduzem o risco de implosão pós-moderna, e mesmo seu esboço”. (WIEVIORKA, 1997, p. 29).

 

A precariedade dos Centros de Recuperação de adolescentes infratores

Os centros de recuperação juvenil, que deveriam estar devidamente habilitados para reeducar e ressocializar o adolescente infrator não resistem à menor auditoria, pois são pardieiros absolutamente horrorosos em sua estrutura espacial, nos quais os menores ali internados são submetidos às incessantes e contínuas humilhações psicológicas e físicas, além de privações de quaisquer métodos efetivamente ressocializadores e reeducadores. De um modo geral as instituições de reclusão de menores têm se mostrado deficientes, tanto em sua estrutura física, quanto à mão de obra qualificada para empreender a tarefa de reeducação.

As instituições de reclusão, de modo geral, se caracterizam: 1) pela má disposição do espaço físico. A maioria das construções é velha, reformada e reutilizada para fins que não os objetivados inicialmente; 2) pela falta de limpeza, principalmente nas celas destinadas às “disciplinas”. Os “Pavilhões de Disciplina” se caracterizam pela sujeira e mau cheiro, próprios da disciplina antisséptica. Nesses pavilhões, a falta de acesso aos banheiros é comum; 3) pela ociosidade dos adolescentes na maior parte do tempo. Os adolescentes ficam trancados nos pátios coberto das Alas a maior parte do tempo, de maneira improvisada, jogando bola ou conversando; 4) pelo cheiro de fezes, urina e suor, que invade os corredores das instituições, uma vez que os menores trocam de roupa poucas vezes por semana. Em algumas instituições, como no Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro, de acordo com auditoria realizada em maio e junho de 1997, foi apurado que os menores só trocavam de roupa uma vez por semana, não possuíam toalhas para tomar banho, nem escovas de dente (ARANTES, 2000, p. 42); 5) pela precariedade de recursos nas instituições e a presença no quadro de funcionários de indivíduos que “não apresentam condições de realizar atividades sócio-educativas, conforme estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente” (ARANTES, 2000, p. 42). Em boa parte das unidades de reclusão de menores a lógica da massificação despersonalizante se torna evidente na identificação numérica que a instituição faz do menor: “o de internação, o dos artigos pelos quais foi enquadrado e o do alojamento sempre lotado onde vive e no total despojamento dos objetos pessoais” (ASSIS, 1999, p. 44); 6) pela superlotação. De acordo com O Estatuto da Criança e do Adolescente as instituições para ressocialização sob medida estrita, isto é, sob reclusão, devem ter no máximo quarenta adolescentes, o que proporcionaria uma atendimento individualizado. Tal não acontece atualmente, pois as instituições em muito ultrapassam esse patamar de quarenta pessoas para cada instituição. Somente o CAJE[1] tem em suas instalações mais de quatrocentos menores. Desse modo os quartos/celas, providos de uma cama de alvenaria e, em alguns casos, duas camas, chegam a abrigar cinco ou seis menores. Há registros de instituições em que uma mesma cama era ocupada, simultaneamente, por dois menores (ARANTES, 2000, p. 42); 7) pela rígida hierarquia e vigilância, exercidas mediante intensa repressão e constantes ameaças por parte da equipe de agentes; 8) pela violação constante do artigo 124 do Estatuto da Criança e do Adolescente; 9) pelo baixo nível de escolaridade dos internos. Nessas instituições para reclusão de menores é possível encontrar não apenas crianças e adolescentes com baixo nível de escolaridade, como também menores completamente analfabetos e que jamais freqüentaram uma escola.

Constata-se que, dezesseis anos após promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, as instituições, cujo propósito serviria à  reeducação e ressocialização do menor infrator, “não se transformaram em unidades de reabilitação, nem se criaram instancias que dariam retaguarda comunitária aos jovens” (DEMO, 1992; DEMO, 1995; ASSIS, 1999, p. 45). As instituições de internação transformaram-se em ambientes prisionais, alterando a relação de sociabilidade entre os dirigentes e os internos sob medidas sócio-educativas. Em algumas instituições de reclusão de menores infratores as polícias militar e civil que antes encerravam seu papel ao conduzir o menor até o espaço reservado a internação, hoje passou a transitar e a ocupar cargos dentro da própria instituição. No CAJE, nos últimos anos a polícia se instala na instituição e os cargos antes ocupados por educadores, sociólogos, psicólogos e assistentes sociais passaram a ser geridos por agentes policiais. A diretoria da instituição tem sido ocupada por delegadas, bem como o setor responsável pela disciplina na instituição, por policiais militares e civis. A polícia, cujo papel maior é o de reprimir a violência ocupou o papel destinado aos técnicos em ressocialização. Essa nova postura em boa parte das instituições de reclusão para menores provocou um distanciamento ente os internos e os agentes responsáveis pela segurança.

A discrepância entre o que prescreve o Estatuto da Criança e do Adolescente e a prática é, de modo geral, nas instituições que deveriam cuidar para que os infratores estivessem sob medidas sócio-educativas, muito grande. Segundo o Artigo 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente “as entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras: 1) observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; 2) não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto da restrição na internação; 3) oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos; 4) preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente”. O Artigo 185 do mesmo Estatuto ainda prescreve: “A internação decretada ou mantida pela autoridade judiciária não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional”. Atualmente as crianças e adolescentes sob medida sócio-educativa estrita, isto é, internados, não apenas se encontram presos em celas, em quase todas as instituições, como também não recebem atendimento personalizado, uma vez que as “pequenas unidades e grupos reduzidos” tornaram-se concentrações volumosas. A maioria das unidades de reclusão de menores mantém em suas instalações centenas de infratores derrubando por completo o “atendimento personalizado” e transformando-o em atendimento coletivizado. O mesmo Estatuto, em seu Artigo 124, item “V”, ainda esclarece que o adolescente privado da liberdade deve ser “tratado com respeito e dignidade”, e no Artigo 125, que é “dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos,[2] cabendo-lhes adotar as medidas adequadas de contenção e segurança”. Em uma simples visita a uma unidade de reclusão de menores infratores, percebe-se o não cumprimento de muitos princípios legais estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, dificultando em muito sua ressocialização e re-introdução na sociedade.

Os problemas relacionados às unidades de reclusão para menores infratores são complexos e sua solução depende de uma gama de fatores não menos intrincados. De acordo com a FONACRIAD,[3] nos anos 90 “apenas 40% das unidades de atendimento a adolescentes autores de ato infracional declaram possuir uma proposta pedagógica para a execução das mediadas sócio-educativas de internação” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1998, p. 36). E o fato de 40% dessas instituições se declararem ter uma “proposta pedagógica para a execução das medidas sócio-educativas” não necessariamente significa que tais medidas estão sendo postas em prática. Muitas instituições não passam das propostas, sem, absolutamente, pô-las em prática. Não é sem razão que em carta circular aos prefeitos de sua região, já em 03 de dezembro de 1832, o ministro Comte d’Argout já afirmava: “Uma prisão jamais será uma casa de educação” (PEYRE, 1982, p. 3).

É instigante a pesquisa apresentada pelo jornal Folha de São Paulo, de 20 de setembro de 1998, em matéria intitulada “Jovem infrator acaba em beco sem saída”, relativa à situação do sistema de reclusão de menores infratores no Estado de São Paulo. Os autores da matéria, André Lozano e Fernando Rosseti afirmam que o “sistema que lida com adolescentes em conflito com a lei em São Paulo faliu [pois]: 1) o número de internações na FEBEM praticamente dobrou nos últimos três anos; 2) medidas menos agressivas que a internação inexistem ou funcionam precariamente, como a liberdade assistida e a semiliberdade; 3) faltam recursos, dificultando ou mesmo impossibilitando a criação de programas alternativos e o trabalho com as famílias; 4) há um grande número de reincidências (aproximadamente um em cada três dos 3.900 internos); 5) faltam equipamentos, tais como escolas, praças, campos de futebol, etc., para o jovem, o que o motiva a permanecer ruas; 6) há sobrecarga dos profissionais que atuam no setor; 7) há resistência de cidades do interior em abrigar unidades menores e mais eficientes; 8) existe demanda de setores da sociedade para um endurecimento do sistema; 9) percebe-se o descumprimento e/ou não implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente; 10) as unidades de internação são localizadas distantes das famílias; 11) há uma superlotação e unidades sem condições de acolhida; 12) observa-se uma severidade na aplicação das medidas sócio-educativas, causando superlotação e revolta (a regra é a internação); 13) há desvirtuamento da função da internação provisória, que se tornou ‘castigo’ (a maioria dos jovens que cometem infrações mais leves é enviada a unidades de internação provisória e permanece lá 45 dias e depois é simplesmente solta); 14) o número de entradas no sistema é maior do que o número de saídas; 15) há culpabilidade mútua entre FEBEM Ministério Público, Judiciário e Executivo (a FEBEM culpa o Ministério Público e o Judiciário pela superlotação devido à aplicação severa da lei; para estes, porém, a responsabilidade pela superlotação é do Executivo, devido à falta de equipamentos); 16) há polêmica em torno da internação – para uns, a quantidade de internações é mínima em relação à população do estado; para outros, só deve ser aplicada aos que cometem atos infracionais mediante violência ou grave ameaça ou aos que praticam infrações de forma reiterada” (LOZANO; ROSSETI apud ARANTES, 2000, p. 16).

 

Os centros de recuperação e sua semelhança com os “campos de concentração”

Um ano depois da Folha de São Paulo publicar a matéria de Lozano e Rosseti, no jornal O Globo, de 24 de setembro de 1999, numa reportagem intitulada “Presidente da FEBEM diz que instituição faliu”, há uma repetição quase que nos mesmos termos da matéria da Folha de São Paulo, indicando a perpetuação da grave situação em que a instituição se encontrava. Abaixo, trechos da matéria publicada:

A Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM), entidade que deveria reintegrar jovens infratores em São Paulo, faliu como modelo de reintegração, admitiu ontem o presidente do órgão, Guido Andrade, há um mês no cargo. A entidade gasta por mês R$ 1.700 com cada adolescente internado.[4] Na rede pública de ensino do país, o gasto anual por aluno é de R$ 320. Apesar desse gasto elevado para manter os jovens no local, só em setembro fugiram de unidades superlotadas da FEBEM 1.031 adolescentes, dos quais 483 foram recapturados. Neste ano, ocorreram várias rebeliões, espancamentos de meninos por monitores mascarados e fugas em massa. Um boa escola particular de São Paulo cobra por mês, em média R$ 500 por aluno (…)

O modelo está falido. Os adolescentes não aprendem praticamente nada. Os R$ 1.700 não são bem empregados e é por isso que a FEBEM está em crise. O problema não é só o custo. No zoológico, os meninos receberiam melhor tratamento, até porque teriam mais espaço e liberdade – admite Andrade, advogado e ex-presidente da seção paulista da OAB (…)

As macroinstituições estão falindo no mundo inteiro, porque tendem à violência e diminuem a transparência, por se distanciarem da sociedade. Mas a questão não é o custo. Menino interno custa caro. O que interessa é o que ele aprende lá. A FEBEM está mais voltada para a segurança. A privação de liberdade é prevista para o menor infrator, mas não as humilhações e espancamentos com monitores mascarados – diz a pedagoga Cenise Monte Vicente, coordenadora executiva de programas do Instituto Ayrton Senna.

A extinção da FEBEM também foi defendida pela comissão do Congresso que, liderada pela deputada federal Rita Camata (PMDB-ES), visitou anteontem a unidade FEBEM-Imigrantes, com capacidade para 320 jovens. Lá estão 1.300. Rita disse que a FEBEM virou campo de concentração.[5]

Em entrevista à revista Veja, edição de 06 de outubro de 1999, o presidente do Sindicato dos Monitores da FEBEM, Antônio G. da Silva, descreve a instituição de reclusão de menores com as seguintes palavras:

Fisicamente aquilo parece Auschwitz. É um campo de concentração. Parece o inferno. É parede desabando, banheiro entupido, menino tomando banho com água suja até a canela. No Complexo Imigrantes, são três chuveiros para cada 400 adolescentes. Quando terminam, estão piores do que quando começaram. Fica resíduo de sabão no corpo, dá micose. As doenças de pele passam de um para o outro, porque a roupa de cama é lavada, no máximo, uma vez por semana. As roupas com que eles dormem são as mesmas com que jogam bola e jantam.[6]

Em maior ou menor escala as demais unidades de internação de todos os Estados brasileiros enfrentam problemas semelhantes. Os recursos financeiros são parcos e insuficientes, pois boa parte desses recursos que deveriam ser investidos nas unidades de internação para menores sob medidas sócio-educativas acabam se desviando para a área de segurança, para melhorar o aparato policial.[7] As autoridades civis e militares entendem que o problema da criminalidade juvenil se resolve com repressão e não com ressocialização. Essa política, adotada nos últimos anos, não tem provocado efeito positivo, uma vez que o índice de criminalidade e violência entre os jovens aumenta consideravelmente a cada ano.

Segundo Atílio Machado Peppe, que ocupou a função de gerente do programa de reinserção social do adolescente em conflito com a lei, do Departamento da Criança e do Adolescente/Ministério da Justiça, “na realidade, os responsáveis pelas políticas e práticas de atendimento sócio-educativo se deparam com problemas de enfrentamento percebidos como mais urgentes para a consolidação do processo de reordenamento institucional, a maioria dos quais impostos pela cultura correcional-repressiva hegemônica” (PEPPE, 2001, p. 5).

Como se não bastassem os graves problemas relacionados à estrutura da privação de liberdade, há de se considerar ainda que a privação da liberdade como medida sócio-educativa para crianças e adolescentes infratores traz mais malefícios do que benefícios, uma vez que o ambiente prisional produz efeitos negativos intensos sobre a personalidade dos aprisionados. Em crianças e adolescentes a prisão provoca uma “sedimentação do sentimento de rejeição” (MAZEROL, 1982, 186).

 

A ineficiência das instituições de reclusão na aplicação de medidas sócio-educativas

Quando se trata de estudar as relações sociais nas instituições de internação para crianças e adolescentes infratores, depara-se com problemas gravíssimos que, em grande medida, intensificam a violência e a criminalidade. Antônio Carlos Gomes da Costa, estudioso do sistema sócio-educativo aponta os principais fatores característicos da “desordem” imperante na maior parte das instituições. Segundo Costa, os principais problemas que mantêm a violência nas instituições de reclusão para crianças e adolescentes infratores são:

1) os quadros de pessoal inadequados; 2) a existência de atitudes prepotentes e de alianças espúrias entre pseudo-educadores e lideranças juvenis; 3) a tática das “situações-limite” provocadas intencionalmente pelos adolescentes, como arma para enfrentar o parco repertório de respostas sócio-educativas das instituições; 4) a visão institucional da arbitrariedade como “mal necessário” na contenção da violência; 5) o pacto de silêncio com relação aos fatos de violação dos direitos dos adolescentes ocorridos na instituição; 6) a preocupação dos dirigentes focada mais na necessidade de “tirar a instituição dos jornais” sem efetuar as mudanças profundas; 7) o “acordo” não escrito entre as equipes dos técnicos, que se desincumbem de funções especializadas, e os encarregados da disciplina, que se incumbem “do resto”, no cotidiano das instituições, ou seja, a utilização do álibi funcional para mascarar a cumplicidade passiva quanto aos fatos de arbitrariedade e violência cometidas contra os adolescentes; 8) a fragilidade das propostas sócio-pedagógicas (COSTA apud PEPPE, 2001, p. 5).

Como se não bastassem todos esses fatores fomentadores da violência reclusa, ainda há de se considerar a existência de contradições inerentes ao regime de contenção dos adolescentes sentenciados que, invariavelmente acirram a violência latente no ambiente prisional e a envia, potencializada para o seio da sociedade, quando o adolescente deixa a reclusão. Peppe também aduz os seguintes questionamentos:

1) Como realizar as exigências de re-educação da liberdade responsável constitutiva do processo sócio-pedagógico de reinserção social do adolescente autor de ato infracional, enquanto submetido à lógica opressiva e repressiva que, na perspectiva de Foucault, caracteriza as ‘instituições totais’, esmagadoras da subjetividade, da autonomia e das identidades individuais? A institucionalização do adolescente, como pessoa em desenvolvimento, sempre estará correndo fortes riscos de despersonalização e de recrudecimento da violência individual e coletiva; 2) a predominância da ociosidade mórbida dos internos, muitas vezes reforçada pela artificialidade das formas de atividade, destituídas de sentido pedagógico e produtivo, fonte inevitável de esvaziamento existencial e busca de compensações perversas, sobretudo nas áreas afetivo-sexual e de drogadição; 3) a utilização arbitrária de inclinações e comportamentos homossexuais como arma de dominação entre internos e entre eles e falsos educadores, reforçando o subserviência freqüentemente imposta aos adolescentes no cotidiano das unidades e, ainda, agravada pela “lei do silêncio”, atrelada não só aos sentimentos de vergonha, mas sobretudo às relações internas de poder; 4) a saúde afetivo-sexual dos adolescentes internos do sistema sócio-educativo, aliada à saúde mental (como resistência aos aliciamentos do mundo das drogas), tende a ser um dos direitos fundamentais mais esquecidos e silenciados. Além de sufocado pela avalanche de múltiplas violações de direitos, equipara-se à imagem de um “vespeiro” que mexido desajeitadamente pode desencadear um enxame insuportável de problemas para a frágil capacidade de resolução sócio-educativa dos mesmos pelas instituições de internação. (PEPPE, 2001, p. 5).

 

A visão midiática da violência infantil e juvenil

A violência não é sinônimo de criminalidade. A mídia, contudo, toma como sinônimo de violência os delitos tradicionais, como o homicídio e o roubo, o que faz com que seja feita um a abordagem tendenciosa da realidade, sem levar em consideração as causas da violência e, na maioria das vezes, tendo como pilar das discussões apenas a versão policial.

Criminalidade é a violência legalmente combatida. Todo crime é algum tipo de violência, mas nem toda violência se configura como crime. Na maior parte das vezes experimentamos o impacto de um sem número de fatores violentos que reverberam em conflitos de toda ordem, dos quais, nem sempre nos damos conta. A violência pode irromper em um ambiente de forma silenciosa, invisível à maioria dos observadores, porém, intensamente sentida pelas vítimas. A mídia, nesse contexto, não discute as causas da violência entre adolescentes, pois é mais fácil espetacularizá-la do que buscar compreender o fenômeno.

 

A imprensa escrita

A discussão midiática acerca da violência gravita, de modo geral, apenas no âmbito de seus efeitos espetaculares. “A imprensa não enxerga o contexto, porque não discute soluções. (…) No mais, há um discurso policial justificando a si mesmo e abastecendo os jornalistas, como se não existissem nem causas nem biografias” (ANDI/DCA-MJ/AMENCAR, 2001, p. 26). Nesse tipo de cobertura jornalística sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com a violência, os jornalistas se valem muito pouco de dados de instituições organizadas para tratar da infância no Brasil, bem como de referências bibliográficas e da legislação, o que empobrece o debate. De acordo com recente pesquisa patrocinada por três órgãos especializados na infância: ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, DCA/MJ – Departamento da Criança e do Adolescente, subordinado ao Ministério da Justiça, AMENCAR – Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente, apenas 4,8% das matérias dos principais jornais do Brasil enfocam o Poder Público na questão que envolve a violência no universo da criança e do adolescente. De acordo com a pesquisa, dos principais jornais do país, apenas 10% utilizam estatísticas de organismos especializados, somente 4,2% fazem referência à legislação pertinente como a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, etc, e apenas 0,25% citam bibliografia de autores nacionais ou estrangeiros especializados no tema (ANDI/DCA-MJ/AMENCAR, 2001, p. 24).

De modo geral, o jornalismo que trata da violência entre crianças e adolescentes infratores resume-se ao tradicional “caso de polícia”, tamanha a quantidade de reportagens baseadas nos Boletins de Ocorrência (“BOs”) das delegacias. (ANDI/DCA-MJ/AMENCAR, 2001, p. 16). Salvo exceções, a maioria da imprensa brasileira não trata a violência entre crianças e adolescentes com imparcialidade. Na verdade, as reportagens da imprensa brasileira informam mal, quando o assunto é violência, porque: 1) são desprovidas de contextualização; o fato ocorrido é isolado de seu contexto; 2) não investigam as causas da violência; apenas seus efeitos e a sua reverberação na sociedade; 3) não procuram soluções; apenas indicam os problemas; 4) priorizam a descrição de atos violentos; 5) transformam o fenômeno social da violência em “casos de polícia” e a imprensa se torna porta-voz das delegacias; 6) Os Boletins de Ocorrência se tornam fontes prioritárias dos jornalistas; nenhum outro documento é pesquisado para montar a matéria jornalística; 7) não responsabilizam o Poder Público, pois este raramente é procurado pela imprensa para se explicar; 8) não cobram a ausência de Políticas Públicas, que mantêm crianças e adolescentes pobres sem condições de se livrarem da violência territorial, concluindo, estigmaticamente, que “o lugar da violência é o lugar da carência social”.[8] Ora, a violência, de qualquer tipo, não é um fenômeno monocausal e, portanto, não pode estar associada meramente à carência social.

 

A imprensa televisiva

Assim como a mídia impressa, a mídia televisiva opta por não fazer uma abordagem isenta, quando o assunto é a violência entre adolescentes. Em 1999 a “Pesquisa Infância na Mídia”, promovido pela ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância e pelo IAS – Instituto Ayrton Senna, registrou um aumento significativo no número de matérias sobre violência e adolescentes. Do quarto lugar, no segundo semestre de 1998, o assunto “violência” passou a ocupar a terceira posição nos dois semestres de 1999. Curiosamente, o noticiário sobre atos violentos e crimes praticados por adolescentes e jovens é abordado de maneira diferente, dependendo do lugar em que se encontra o adolescente na cena de violência ou crime. Caso o adolescente seja a vítima, a mídia o enfoca preferencialmente uma vítima da crise sócio-econômica. Contudo, se esse mesmo adolescente, ao invés de ser a vítima, passar a ocupara a posição de agressor, a mesma mídia o trata como “um mero criminoso, sem levar em consideração o contexto social em que vive e do qual também é um produto” (INFÂNCIA NA MÍDIA, 2000, p. 65). O jovem é vítima ou protagonista da cena violenta: quando é vítima a mídia televisiva o enfoca como um pobre coitado que sofre as conseqüências de uma sociedade desestruturada e em crise. Entretanto, quando ele porta uma arma e provoca a violência é retratado como um elemento criminoso que deve ser extirpado da sociedade, mediante um combate imediato. A mídia não leva em consideração de que se trata do mesmo jovem, que atua nas mais diversas cenas de violência, retratadas nos telejornais diários. Ora é a vítima, ora o vitimizador. “Se a arma está em suas mãos, há algo de errado nisso e deve ser apurado” (INFÂNCIA NA MÍDIA, 2000, p. 71), o que não é feito pela mídia.

Quando a mídia trata da violência que envolve crianças e adolescentes, esbarra em dificuldades para uma leitura adequada do fenômeno. A mídia jovem, por exemplo, produziu em doze meses, apenas 70 textos tratando da violência, num universo de 10.940 textos. A cobertura diária do tema “violência” pelos principais jornais brasileiros é bastante extensa. No mesmo período de 12 meses os principais jornais brasileiros publicaram 14.905 textos sobre o assunto, contudo, 80% das matérias estava calcada tão somente nos Boletins de Ocorrência das Delegacias de Polícia, o que, invariavelmente, leva à produção de textos policialescos, sem levar em conta as reais causas da violência entre adolescentes e jovens (ANDI/IAS/UNESCO, 2001, p. 7). “Os dados oficiais contribuem para este quadro de desinformação. A maior parte das estatísticas está baseada no fracasso das instituições de privação de liberdade: mede os índices de reincidência, ao invés de focalizar os de reinserção. Os números produzidos por estudos encabeçados por órgãos governamentais não são os mesmos daqueles apresentados pelas próprias entidades. O diálogo com a direção destas instituições é, historicamente, difícil. Assim, a mídia fica sem acesso a dados confiáveis e sem elementos para a produção de matérias mais qualificadas” (ANDI/IAS/UNESCO, 2001, p. 31).

Tratar da questão da violência entre crianças e adolescentes no Brasil envolve uma discussão ampla. Muitos fatores causais sustentam essa violência e empurram os que se envolvem com ela para o mundo da reclusão. Atualmente, para cada pessoa que, diariamente, morre em Israel, morrem mais de 50 no Brasil, por homicídio. Nos finais de semana aumenta em mais de 70% o número de mortos, tanto da população geral, quanto dos jovens.[9] O número de adolescentes mortos aumenta consideravelmente nos finais de semana. De sexta-feira a domingo há um aumento de 70% das mortes em todo o território nacional. O crescimento da taxa de mortalidade no Brasil só aumentou nas duas últimas décadas em razão da violência na população jovem. “Se a taxa global de mortalidade da população brasileira caiu de 633 em 100.000 habitantes em 1980, para 573 em 2000, a taxa referente aos jovens cresceu, passando de 128 para 133 no mesmo período, fato já altamente preocupante” (WAISELFISZ, 2002, p. 25). Em se tratando da combinação entre violência e adolescência “estamos diante de um comportamento epidêmico. Ao invés de fazermos política de segurança pública por meio de demagogia, devemos repreendê-la de modo responsável”.[10]

 

 Bibliografia

ANDI/IAS/UNESCO, A mídia dos jovens: a marca do crime: os delitos da imprensa na cobertura da violência, Ano 05, Número 09, Brasília: ANDI/IAS/UNESCO, 2001.

 ANDI/DCA-MJ/AMENCAR, Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência, Brasília: ANDI/DCA-MJ/Amencar, 2001.

ARANTES, Esther M. (Org.). Envolvimento de Adolescentes com o uso e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro / Cadernos Prodeman de Pesquisa. – N.1 – Rio de Janeiro: UERJ, PRODEMAN, 2000.

ASSIS, Simone Gonçalves de. Traçando caminhos numa sociedade violenta: a vida de jovens infratores e seus irmãos não infratores. Rio de Janeiro/Brasília: FIOCRUZ-CLAVES/UNESCO/Departamento da Criança e do Adolescente – Secretaria de Estado dos Direitos Humanos – Ministério da Justiça, 1999.

DEMO, Pedro. Cidadania Menor: algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política. Petrópolis: Vozes, 1992.

______, Pedro. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas: Autores Associados, 1995.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (1990), Estatuto da Criança e do Adolescente: lei 8.069/90 – apresentado por Siro Darlan. Rio de Janeiro: DP&A, 4. edição, 2002.

GATTI, Bruna Papaiz; PAULA, Liana de. CAJE: instituição de recuperação ou escola de criminalidade?. Monografia apresentada ao Departamento de Sociologia da UnB, Brasília: 2000.

INFÂNCIA NA MÍDIA: UMA PESQUISA, Coordenação da pesquisa Marco Túlio Alencar. – Brasília: ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância / Instituto Ayrton Senna, 2000.

JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20/09/1998.

JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 28 agos. 2002.

JORNAL O GLOBO, São Paulo. 24 set. 1999.

MAZEROL, Marie-Thérèse. Les effets psychologiques de la détention. In De la delinquance a la detention. Vaucresson: Centre de Recherche Interdisciplinaire Vaucresson, 1982.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/ DEPARTAMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Atendimento ao adolescente em conflito com a lei: reflexões para uma prática qualificada. Brasília: MJ/DCA,1998.

PEPPE, Atilio Machado. Dever do Estado e direitos do adolescente na assistência à saúde. Palestra pronunciada em 13/12/2001, por ocasião da “Oficina de Trabalho Adolescentes, Medidas sócio-educativas e AIDS”, Coordenação DST/AIDS do Ministério da Saúde & Departamento da Criança e do Adolescente/ Secretaria de Estado dos Direitos Humanos/Ministério da Justiça: Brasília, 2001.

PEYRE, V. et alii. De la delinquance a la detention. Vaucresson: Centre de Recherche Interdisciplinaire, 1982.

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REVISTA VEJA. São Paulo. 06 out. 1999.

WAISELFISZ, Jacobo. Mapa da violência III: os jovens do Brasil: juventude, violência e cidadania. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Ministério da Justiça/SEDH, 2002.

WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tempo Social. São Paulo. v. 9, n. 01, p. 5-41, maio de 1997.

 

Notas

[1] Instituição para medida sócio-educativa com internação estrita (regime de reclusão) de adolescentes infratores em Brasília.

[2] Grifo dos pesquisadores.

[3] FONACRIAD é a sigla que identifica o “Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente”.

[4] Declaração da assistente social mais experiente no CAJE, em entrevista concedida a Bruna Papaiz Gatti, confirma esses dados. De acordo com a assessora técnica o menor recluso no CAJE custa aos cofres do Estado entre R$ 1.400 e R$ 1.600. Para ela “Brasília não foge à regra (…) um menino desses custa uma base de R$ 1.400 a R$ 1.600 por mês para o Estado. Não fica menos que isso, fica muito caro!” (GATTI, 2000, Anexo II, p. 5).

[5] Jornal O Globo, edição de 24 de setembro de 1999. Grifo dos pesquisadores.

[6] Revista Veja, edição de 06 de outubro de 1999. Grifo meu.

[7] Declaração de Paulo Sérgio de Morais Sarmento Pinheiro, por ocasião do lançamento do livro “Mapa da Violência III: os jovens do Brasil”.

[8] Declaração de Paulo Sérgio de Morais Sarmento Pinheiro, por ocasião do lançamento do livro “Mapa da Violência III: os jovens do Brasil”.

[9] A definição de juventude pode adquirir conotações diversas. Contudo, para a Organização Pan-Americana da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, OPS/OMS, “a adolescência constituiria um processo fundamentalmente biológico durante o qual se acelera o desenvolvimento cognitivo e a estruturação da personalidade. Abrangeria as idades de 10 a 19 anos, divididas nas etapas de pré-adolescência (de 10 a 14 anos) e de adolescência propriamente dita (de 15 a 19 anos). Já o conceito de juventude resumiria uma categoria essencialmente sociológica, que indicaria o processo de preparação para os indivíduos assumirem o papel de adulto na sociedade, tanto no plano familiar quanto no profissional, estendendo-se dos 15 aos 24 anos. Portanto, abrangendo boa parte dos adolescentes que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 2º “Considera-se criança, para efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescentes aquela entre doze e dezoito anos de idade” (WAISELFISZ, 2002, p. 18).

[10] Declaração de Paulo Sérgio de Morais Sarmento Pinheiro, por ocasião do lançamento do livro “Mapa da Violência III: os jovens do Brasil”.