O sagrado e a violência são fenômenos universais que apontam para dificuldades de ordem conceitual e de delimitação empírica. Os deuses, os mortos e o sagrado integram um contexto de substituição sacrificial, pois “o jogo do sagrado e o jogo da violência são apenas um. Sem dúvida, o pensamento etnológico dispõe-se a reconhecer, no seio do sagrado, a presença de tudo o que pode ser recoberto pelo termo violência. Mas ele acrescentará imediatamente que há também, no sagrado, algo de diferente e mesmo contrário à violência. Há tanto a ordem quanto a desordem, tanto a paz quanto a guerra, tanto a criação quanto a destruição” (GIRARD, 1998, p. 323). Durkheim, por sua vez, afirma que “onde a fé religiosa é muito intensa, muitas vezes ela inspira homicídios” (DURKHEIM, 2000, p. 463).

A violência está sempre presente na sociedade. Uma sociedade não violenta, na verdade, é tão somente uma sociedade com um rígido controle da latente violência. Esse controle, certamente, é um controle violento de combate à violência, de modo que a sociedade sempre manterá um grau de violência, ora na ilegalidade, ora na mais completa legalidade, como fator de combate à violência ilegal. A religiosidade (veja nota abaixo) tem um relacionamento estreito com a violência. A religiosidade e a violência não são dois fenômenos excludentes. Antes, se completam, se compensam e se equilibram. A violência mantém a religiosidade num determinado grupo social, e esta mesma religiosidade incita à violência, neste determinado grupo, como um instrumento de libertação de tudo quanto oprime a fé professada pelos indivíduos do referido grupo.

A observação da relação entre os fenômenos violência e religiosidade, num determinado grupo social, mostra que essa relação é o resultado de motivações pessoais religiosas e não religiosas, pois “a mistura de impulsos religiosos e de impulsos egoístas explicam os fenômenos sociais” (WEBER, 1999, p. 23). Trata-se, portanto, de romper com o senso comum e demonstrar cientificamente que a religiosidade expoencia a violência. A relação dialética entre a religiosidade e o comportamento violento é um fator a ser analisado com muita atenção. Ora, o rompimento com o conhecimento vulgar é essencialmente necessário, pois “a pesquisa científica organiza-se em torno de objetos construídos que não têm nada em comum com as unidades separadas pela percepção ingênua” (BOURDIEU, 1999, p. 46).

Portanto, a ruptura com o senso comum, segundo o qual a religiosidade dissipa e extingue a violência, implica quebra de paradigmas teóricos e empíricos tradicionais. Esse exercício mental é uma “primeira ruptura”. De fato, “o senso comum, o conhecimento vulgar, a sociologia espontânea, a experiência imediata, tudo isso são opiniões, formas de conhecimento falso com que é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico, racional, válido” (SANTOS, 1989, p. 31).

Toda religião pede um sacrifício, e se não há sacrifício não é religião. Ora, “a função do sacrifício é apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão de conflitos” (GIRARD, 1998, p. 26), além de garantir a própria dinâmica da violência sacrificial. Essas tempestades de violência, culminando quase sempre na morte de um dos indivíduos pertencentes ao grupo social, são verificadas nas sociedades religiosas, o que permite a compreensão do aumento da violência em relação direta com o aumento da religiosidade em âmbito global.

Nas sociedades religiosas, o lugar da dúvida é na fogueira, para que não se contrarie o monopólio hierárquico eclesiástico da verdade. Portanto, o corpo do sacrifício garante a hegemonia e o monopólio da verdade e da força. A sociedade religiosa não pode ser contrariada. Aqueles que tentam subverter a ordem religiosa são ritualmente sacrificados. Os deuses dessa sociedade exigem derramamento de sangue (rituais de expiação).

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Nota

A religião é o anti-cristianismo e o cristianismo é a anti-religião. A essência do cristianismo é a vida abundante em Cristo, enquanto o cerne da religião estará sempre posto na violência. Karl Barth – a despeito de todas as críticas à sua teologia, e com razão – analisou acertadamente que a religião é a tentativa humana de autodeterminação, é a tentativa humana de salvação e santificação por seus próprios esforços. Para Barth, a religião é uma forma de negligência do reconhecimento do senhorio de Deus em Jesus Cristo. Eberhard Busch – um dos discípulos mais próximos de Barth – diz que para ele, a religião pode se apresentar como uma troca do Deus verdadeiro por uma mentira. Logo, a religião poderia ser considerada uma revolta contra Deus. Também poderia ser considerada um fenômeno anti-Deus. A religião é uma pretensa substituta da revelação, é crença de homens sem Deus e, consequentemente, ferramenta não de libertação, mas de domínio sobre seres humanos.

 

Bibliografia

BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON J.; PASSERON J. A profissão de sociólogo: Preliminares epistemológicas. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

BUSCH, E. The Disconcerting Truth – The Problem of Religion. In: _____. The great passion: an introduction to Karl Barth’s Theology. Grand Rapids: Eerdmans, 2004, p. 141-145.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1998.

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.